A Justiça é especializada e independente, dotada de particularidades, como o poder normativo e a atividade consultiva (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
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Publicado em 26 de maio de 2023 às 08h30.
Por André Ramos Tavares*
Na democracia, o poder máximo tem como titular o povo, ou seja, mesmo as decisões políticas são tomadas em nome dos cidadãos e na busca do bem de todos. A engrenagem real que sustenta esse modelo, entretanto, necessita de nossa atenção e de nosso cuidado permanentes. Essa engrenagem é composta por diversos elementos e “instruções”, como os direitos políticos amplos, o exercício do voto em condições constitucionais, as eleições periódicas e livres, a criação e funcionamento de partidos políticos e a aquisição e exercício do poder por representantes.
Nesse contexto, o processo eleitoral desempenha um papel superlativo, determinando, em última instância, o resultado fidedigno das eleições e, portanto, catalisando a vontade livre de milhões de pessoas para o bom funcionamento das engrenagens democráticas. Mas esse controle deve ser realizado por instâncias políticas, como o Parlamento ou uma Comissão Eleitoral de cunho político? Tenho por certo, como já afirmei em publicação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de 2011, que um controle político do processo eleitoral pode acabar reforçando “interesses políticos em detrimento dos institucionais, mesmo em ambientes mais avançados e conscientes das necessidades políticas”.
Aliás, a adoção de um controle político do processo eleitoral era comum na primeira metade do século XX: a Constituição dos Estados Unidos da América o estabeleceu, assim como a Constituição de 1824 do Império do Brasil e a nossa Constituição de 1891.
Hoje, nosso modelo é o jurídico-judicial, um controle feito, portanto, pelo Poder Judiciário, conforme seus ritos e salvaguardas, tendo um parâmetro objetivo, que são as normas estabelecidas com anterioridade e conhecimento geral. Trata-se de modelo adotado por alguns países após a Primeira Guerra Mundial, em substituição ao controle exercido por parlamentos.
Essa mudança de modelos justificou-se pela existência da preponderância dos interesses políticos e partidários no período do “controle” político, em oposição aos interesses e padrões institucionais, como escreveu o ex-ministro das Relações Exteriores do Uruguai Héctor Gros Espiell em seu estudo Control político de la Constitución: el caso de Uruguay. Tribunais estão mais bem equipados e com melhor aptidão estrutural para desempenhar esse mister.
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O uso de um tribunal para controle foi adotado na conhecida Constituição de Weimar, de 1919, em seu artigo 31, que previu a Corte de Investigação Eleitoral. Não por acaso, nessa mesma época, tivemos outra importante inovação: os tribunais constitucionais, inaugurados com a Constituição da Áustria, de 1920. Trata-se do nascimento de um amplo movimento mundial que iria culminar em tribunais fortes, técnicos e distantes das disputas próprias da arena política.
Nossa atual “Constituição Cidadã” — assim referida em virtude da ampla participação da sociedade civil em seu processo de elaboração e pela forte consagração de direitos fundamentais — reafirma a posição da nossa Justiça, especializada e independente, dotada de particularidades, como o poder normativo e a atividade consultiva.
Essa confirmação democrática da Justiça Eleitoral brasileira é também o ponto inicial de uma opção mais ampla, que implanta um sistema judiciário forte, em prol da cidadania, e estabelece o Supremo Tribunal Federal (STF) como guardião máximo da Constituição.
Criou-se, portanto, uma estrutura diferenciada e com ampla capacidade de ação, que atende às especificidades do País e confere segurança democrática acerca da composição das instâncias representativas. Isso realça nossa capacidade histórica de oferecer respostas adequadas e inovadoras a grandes desafios enfrentados pelas democracias. A Justiça Eleitoral brasileira é uma conquista da sociedade.
*Ministro do TSE e professor titular da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP). Também é presidente do Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais (Ibec)