BLACK FRIDAY NOS EUA: novo livro traça a história do consumo desde o século 15 até os dias atuais / Tom Pennington/ Getty Images (Tom Pennington/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 8 de outubro de 2016 às 09h50.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h17.
Empire of Things: How We Became a World of Consumers, from the Fifteenth Century to the Twenty-First
Autor: Frank Trentmannn
Editora: Harper. Páginas: 880
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Joel Pinheiro da Fonseca
O que consumimos define quem somos? Gostamos de acreditar que não, mas se alguém fosse parar para estudar em detalhes a história e a geografia do consumo humano, bem como os produtos consumidos mudam ao longo do tempo de acordo com o gosto dos consumidores e as pressões de Estados e empresas, poderia dizer muito sobre as pessoas envolvidas. É a isso que Frank Trentmann se propõe em Empire of Things: How We Became a World of Consumers, from the Fifteenth Century to the Twenty-First (Império das coisas: como nos tornamos um mundo de consumidores do século 15 ao 21, em uma tradução livre).
O livro adota um escopo histórico e geográfico bastante amplo. Toma como ponto de partida, depois de uma jornada pela Itália da Renascença, o século 15, época das grandes navegações e do primeiro ímpeto de globalização verdadeiramente intercontinental: o tráfico negreiro (e o comércio de açúcar) que ligou Europa, África e América. Na ponta final desse processo, como não poderia deixar de ser, estava o consumo: a verdadeira necessidade que europeus tinham em consumir produtos tropicais, em especial o açúcar da cana, verdadeira droga para os homens de então. Estavam dispostos a pagar tanto por essa iguaria que o retorno justificava que se capturasse e se trouxesse pessoas do outro lado do Atlântico para trabalhar nas plantações americanas. O Extremo Oriente, fonte de produtos e, posteriormente, de consumidores ávidos, fechava o globo.
Com a industrialização, iniciou-se um novo capítulo da história humana, e a quantidade de bens disponíveis aumentou de maneira exponencial. Sempre com muita riqueza de detalhes, Trentmann examina as mudanças de gostos e demandas, bem como as exigências industriais que moldaram o mundo moderno. Ao contrário do que às vezes se pensa, a evolução do consumo não foi determinada apenas por gostos e modas dos consumidores, embora esses sempre tenham tido um papel. Demandas de Estados e empresas foram e são igualmente importantes na determinação dos bens que compõem nossa existência. A dieta de uma parte considerável da humanidade, por exemplo, é determinada por escolhas corporativas do que será servido nas cantinas empresariais.
Para o leitor casual, algumas escolhas do autor parecerão questionáveis: um exemplo são as longas listas de inventário de consumidores ao longo dos séculos. Cumprem o papel de ilustrar concretamente o que se consumia em diferentes épocas, mas pode tornar a leitura mais penosa. Mesmo assim, o estilo é sempre direto ao ponto, a escrita fluida, e a riqueza de fatos e diferentes contextos estudados devem prender o interesses de todos que gostam da história do mundo.
A primeira parte do livro obedece à estrutura cronológica. A segunda abre uma consideração voltada a tópicos do consumo nos dias de hoje. Merece especial destaque a relação entre consumo e religião, que é surpreendentemente complexa. Ao longo do século 20, o cristianismo, especialmente em sua versão católica, foi o foco de uma crítica ao consumismo, ao excesso do consumo que se considerava característico da nossa época. Abrindo-se ao marxismo, a crítica ao capitalismo virou um lugar-comum da teologia católica. Ao mesmo tempo, a teologia da prosperidade, que tanto cresceu no Brasil nas últimas duas décadas, vê no consumo opulento sinais da graça divina.
O islã, por sua vez, radicalmente oposto ao mundo ocidental decadente e seu culto ao consumo, acaba também produzindo o seu próprio consumismo, dos shopping centers de Ryad que substituíram a arquitetura tradicional aos vídeos de youtube do Estado Islâmico.
Indo além do campo estritamente religioso, Trentmann observa que a ascensão do consumo – o aumento da quantidade de bens ao alcance de um número cada vez maior de pessoas – foi sempre acompanhado de tentativas de limitá-lo (leis suntuárias, proibição de importações, etc.) e de maneiras de modulá-lo: as primeiras iniciativas de consumo ético surgiram no século 19, assim como o consumo sustentável viria moldar muitas relações econômicas no fim do século 20 e início do 21. As tentativas de repressão, contudo, tendem a fracassar: a China maoísta é hoje um dos países mais consumistas do mundo, sem ter mudado sua estrutura política e sua ideologia oficial. E ninguém é estranho ao pujante mercado de consumo católico, de livros, adereços, imagens, relíquias, etc.
Outro tema fundamental, que fecha o livro, é o desperdício e seu subproduto: o lixo. Energia elétrica, comida, roupas, eletrônicos: seja qual for o produto ou serviço, consumimos mais hoje do que no passado, e grande parte desse consumo é descartado, se acumulando em lixões. Será a humanidade capaz de controlar sua sanha – até hoje insaciável – por consumo, que sempre foi arraigada em nossa natureza, mas que hoje consegue mobilizar o planeta inteiro para ser satisfeita? É a grande pergunta que esse vasto livro – tão distante do maniqueísmo que em geral define os tratamentos dado ao consumo – nos deixa e nos incita a responder.