Economia

Uma aventura chamada Nike

Phil Knight não é de falar muito. Suas entrevistas são raríssimas. Seus discursos, praticamente inexistentes. Em um deles, para a classe de formandos da Escola de Negócios de Stanford em 2014, definiu-se como uma pessoa que intensamente desgosta de falar em público e que considera extrovertido alguém que converse olhando para os sapatos de outra […]

PHIL KNIGHT: trabalho duro é crítico, mas sorte pode decidir o resultado  / Jim Rogash/ GettyImages

PHIL KNIGHT: trabalho duro é crítico, mas sorte pode decidir o resultado / Jim Rogash/ GettyImages

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Da Redação

Publicado em 14 de maio de 2016 às 08h24.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h09.

Phil Knight não é de falar muito. Suas entrevistas são raríssimas. Seus discursos, praticamente inexistentes. Em um deles, para a classe de formandos da Escola de Negócios de Stanford em 2014, definiu-se como uma pessoa que intensamente desgosta de falar em público e que considera extrovertido alguém que converse olhando para os sapatos de outra pessoa, em vez de para os próprios. Ele usa óculos escuros quase o tempo todo, mesmo dentro dos prédios.

Esse estilo, quase uma fobia, se estende às relações no trabalho. É comum que, quando seus empregados lhe perguntem algo, ele simplesmente não responda. Em sua sala, Knight adota o oposto da política das portas abertas: pouquíssimos funcionários já tiveram acesso a ela. Um executivo próximo a ele, citado num artigo da revista Fortune em 2005, afirmou que não pisava na sala do chefe havia quase uma década. A única coisa que se sabe é que ela segue o estilo japonês — a tal ponto que ninguém pode entrar de sapatos. Nem mesmo se forem Nike.

O que fez então com que Phil Knight transpusesse sua aversão à comunicação e escrevesse a história de sua companhia, o maior império de calçados e artigos esportivos do planeta? Segundo ele próprio, um filme. Uma certa noite em 2007, Knight e sua mulher, Penny, foram assistir a The Bucket List (Antes de Partir, na versão brasileira). Na história, os personagens vividos por Jack Nicholson e Morgan Freeman descobrem que têm câncer e decidem fazer tudo o que ficou faltando em sua lista de desejos antes de morrer. Ao final da sessão, Knight encontrou dois conhecidos: Bill Gates e Warren Buffett (formando uma roda que valia, na época, pouco mais de 100 bilhões de dólares). E voltou para casa encasquetado com o que teria em sua “lista do balde” (o termo vem da expressão “chutar o balde”, que em inglês significa “morrer” — o nosso “bater as botas”).

Para alguém que viajou tanto, esteve em tantos eventos com tantas estrelas da elite do esporte, a lista tem basicamente dois itens apenas: ajudar algumas universidades a mudar o mundo e ajudar a encontrar a cura para o câncer. Para isso, Knight é um dos maiores filantropos do planeta, doando mais de 100 milhões de dólares por ano.

Ele conclui que sua lista não é tanto de coisas que gostaria de fazer antes de morrer, mas de coisas que gostaria de dizer. E algumas, desdizer. Daí veio sua decisão de falar da Nike. “Muita gente já contou a história, ou tentou, mas eles sempre entregam metade dos fatos, se tanto, e nada do espírito. Ou vice-versa”, escreveu em Shoe Dog: a memoir by the creator of Nike (“Viciado em calçados: uma memória do criador da Nike”, numa tradução livre), lançado no final de abril.

Ninguém pode acusar Knight de não ter se dedicado ao projeto. Para escrever o livro, ele consultou seus arquivos, os arquivos da empresa, entrevistou os primeiros funcionários. E fez um curso de escrita em Stanford — que deu bons resultados. Com a ajuda de profissionais que o ajudaram a revisar os vários rascunhos de cada capítulo, Knight fez um relato que começa um pouco enfadonho, quando descreve suas viagens pelo mundo, mas engrena e chega a ser tocante quando foca a empresa. Algo que talvez, por si só, já percorra um grande caminho para explicar o sucesso da Nike: a empresa é a vida para ele.

As angústias do crescimento

Em setembro de 2014, Peter Thiel, fundador do PayPal e empreendedor em série, lançou De zero a um, um livro revelador sobre o nascimento de uma empresa, a passagem de uma não existência (o zero) para a existência. O livro de Knight traz também o estalo inicial, mas seu conteúdo mais denso está na fase seguinte, a passagem do 1 para o 1 milhão. Sua história cobre o período de sua “grande ideia”, em 1962, até 1980, quando a empresa abre o capital e passa a fabricar tênis na China.

Se às vezes parece uma história de aventura, em que uma turma de garotos mais ou menos desajustados sai de um perigo para entrar em outro, até finalmente, entre viagens e bebedeiras, conquistar o cálice sagrado, Shoe Dog é também uma lição de vida real: das diversas fases de problemas por que uma companhia tem de passar para atingir a maioridade e das soluções nem sempre louváveis que encontra, incluindo pagamento de propina, lobby contra impostos, a busca incessante por lugares onde a mão de obra seja mais barata e até roubo de documentos. Knight tem a generosidade de fazer um relato franco dos limites, dos tropeços e das angústias do crescimento.

A história não é de todo desconhecida. A maior parte dos episódios está contada num livro de 1991, Swoosh (o nome daquele símbolo da Nike, que evoca, segundo Knight, o barulho que o vento faz quando alguém passa por você na corrida). O livro foi escrito pelas irmãs Laurie Becklund e Julie Strasser, esta última a mulher de um dos primeiros funcionários da empresa, Rob Strasser. Mas era um livro sem a voz de Knight. E isso faz toda a diferença.

Uma coisa é saber que Knight se fez passar por empresário estabelecido para obter a representação dos tênis dos japoneses. Outra é ouvir seu próprio relato de como inventou, num instante, o nome Blue Ribbon quando lhe perguntaram com que empresa trabalhava. Ou como ele e Strasser se desentenderam após o sucesso de um modelo de tênis, e como ele se considerou traído quando Strasser foi trabalhar para a arqui-inimiga Adidas (e como ele se arrepende de não ter feito as pazes com o amigo, morto em 1992 de ataque do coração, aos 46 anos).

Uma coisa é ser levado a acreditar que Knight agia pouco e que a maior parte do sucesso se deveu a ações da primeira turma da empresa. Outra, bem diferente, é ler que seu estilo vem, em parte, da admiração pelo general George S. Patton, um comandante da Segunda Guerra, que dizia: “Não diga às pessoas como fazer as coisas. Diga o que tem de ser feito e deixe que elas o surpreendam com o resultado”.

O segredo do sucesso

A história da Nike começa na década de 50, quando Phil Knight treinava corrida, na Universidade de Oregon, supervisionado pelo famoso treinador Bill Bowerman. Rígido, perfeccionista, inspirador, Bowerman foi o treinador que mais teve atletas que conseguiam correr 1 milha em menos de 4 minutos. Sua estratégia, segundo Knight, era: imprima uma passada rápida nas duas primeiras voltas, corra a terceira o mais rápido que puder e, na quarta, triplique essa velocidade. “Havia algo de zen nessa estratégia, porque era impossível”, diz Knight. “Mas funcionava.”

Bowerman vivia mudando os calçados, rasgando-os e costurando-os de novo para melhorar os tempos dos corredores. Knight era uma de suas cobaias preferidas.

Alguns anos depois, quando estudava em Stanford, Knight apresentou um trabalho para o curso de empreendedorismo. Entendia algo de tênis e sabia que os japoneses, na década de 60, com um misto de mão de obra barata e dedicação ao movimento da qualidade, haviam destronado os alemães do mercado de máquinas fotográficas. Sua ideia era fazer o mesmo com os tênis.

Ele conseguiu convencer o pai a bancar uma viagem pelo mundo. No Japão, entrou em contato com a Onitsuka e conseguiu que eles lhe mandassem alguns tênis de corrida (que só foram enviados mais de um ano depois). Quando recebeu a encomenda, Knight mandou dois pares para seu antigo técnico. Bowerman adorou o presente, intuiu que ali havia um negócio e quis entrar como sócio. A divisão ficou 51% para Knight, 49% para Bowerman.

Os primeiros anos da Nike (que então se chamava Blue Ribbon) seguem esse padrão. Gente contratada sem muita ciência, apenas pela empatia, entre candidatos com paixão pelo esporte. Aos poucos, Knight vai movimentando suas peças para encaixá-las onde tenham maior talento.

Começando com vendas feitas do porta-malas do carro, Knight fazia algo temerário: dobrava suas vendas a cada ano. Para isso, contrariava todos os manuais de contabilidade da época. Hoje é comum uma empresa apostar em conquista de mercado para depois pensar em monetização (a estratégia da Amazon, por exemplo, ou da maioria das startups). Mas isso é porque existem venture capitalists que apostam nessas empresas. Naquele tempo, os bancos eram mais conservadores. As leis não permitiam que bancos comerciais funcionassem como bancos de investimento. Daí que, para financiar seu crescimento, Knight incorria numa espécie de pedalada fiscal. Quanto mais vendia, mais empréstimos pegava. O dinheiro não parava em sua conta.

Era uma estratégia para lá de arriscada. Mas Knight teve a sorte de estar num mercado que cresceria assombrosamente. A corrida, nas décadas de 60 e 70, entrou na moda. E, mais tarde, conforme foram ficando mais bonitos e confortáveis, os tênis passaram a ser usados para passeio. A Nike surrou essas duas ondas. Mas não apenas por sorte. Ela ajudou a criar essas duas ondas, investindo em design e, mais tarde, propaganda, muita propaganda (embora Knight diga, curiosamente, que não acredita no poder da propaganda).

Bowerman era um ativo extraordinário para a companhia. Não só como peça de marketing, por ser um técnico lendário, mas como departamento de inovação. Um dos exemplos de mudanças revolucionárias em calçados: inspirado pela máquina de fazer waffles de sua mulher, ele criou a sola waffle, que dava mais tração na pisada e, consequentemente, mais impulso.

O fracasso sempre à espreita

A trajetória da Nike nos primeiros anos foi de vendas ascendentes e constantes ameaças de fracasso. Por isso, Knight arrumou um emprego — primeiro como contador da Price, depois como professor de contabilidade na Universidade de Portland, onde deu aula a uma jovem que contratou e com a qual depois se casou, Penelope.

Em 1970, com vendas na casa dos 600.000 dólares, Knight tentou um empréstimo de 1,2 milhão de dólares. O banco não autorizou. E ainda o denunciou ao FBI por suspeita de condução fraudulenta dos negócios. Ao mesmo tempo, a Onitsuka tentava encontrar outros distribuidores para seus tênis. A solução dupla foi se unir à Nissho, uma corporação que tinha um braço de financiamentos para estimular a exportação japonesa. Com esse apoio, Knight conseguiu financiamento e driblou a Onitsuka, produzindo tênis em outras fábricas, com a marca Nike (que mais tarde viraria o nome da empresa).

Foram tantos os percalços da empresa, tantas as ocasiões em que ela quase foi para o buraco, que se entende a conclusão de Knight: “Trabalho duro é crítico, um bom time é essencial, cérebro e determinação são de valor incalculável, mas a sorte pode decidir o resultado.” E se você não tiver sorte? “Desista”, diz Knight. “Esses que aconselham os empreendedores a nunca desistir são uns charlatões. Às vezes você tem de desistir.” Mas desistir, segundo ele, não significa parar. “Não pare nunca.”

Não parar, porém, tem seus custos. Principalmente pessoais. Quando a empresa lançou seus primeiros calçados infantis, o filho mais velho de Knight, Matthew, anunciou que jamais usaria Nike enquanto vivesse. “Era sua forma de expressar raiva pelas minhas ausências e por outras frustrações.”

Um negócio não é só um negócio

Apesar da motivação de Knight de contar a história “com todos os fatos e todo o espírito”, é claro que isso não é possível. A visão do empreendedor é, obviamente, enviesada. Por exemplo, a polêmica que envolveu a Nike nas denúncias de trabalho em condições subumanas, nas fábricas da Ásia, só é tratada vagamente no capítulo final. Knight repudia as acusações — “nenhum repórter viu como eram as empresas antes de nós entrarmos, e quanto elas melhoraram”; “nunca disseram que as fábricas não eram nossas, éramos um cliente entre vários”; “tínhamos de operar nos limites de cada país, e um deles nos impediu de aumentar salários porque um sapateiro não podia ganhar mais que um médico” — mas reconhece que elas foram instrumentais para “reinventar a companhia”.

Também não há menção, no livro, aos escândalos de infidelidade serial de Tiger Woods, abuso de drogas de Lance Armstrong e assassinato da namorada por Oscar Pistorius, todos atletas patrocinados pela Nike quando se tornaram contra-exemplos para os jovens. Há apenas uma menção a Tiger, o primeiro atleta a telefonar para Phil Knight quando Matthew, seu filho, morreu. “Sua chamada veio às 7h30 da manhã. Eu nunca, nunca vou esquecer. E não vou aturar nenhuma palavra ruim dita sobre Tiger na minha presença.”

Para Knight, tudo é pessoal. Se um negócio é apenas negócio, é porque está indo mal. O negócio tem de ser algo pelo qual valha a pena brigar.

(David Cohen)

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