Tempestade à vista: momento pelo qual o mundo passa é mais propício para uma crise global, diz a Eurasia (Jules Kulcsar / EyeEm/Getty Images)
Ligia Tuon
Publicado em 11 de janeiro de 2020 às 08h00.
Última atualização em 13 de janeiro de 2020 às 17h10.
São Paulo — "O ano de 2020 parece realmente preocupante", diz o grupo Eurasia em relatório publicado nesta semana. No documento, a consultoria americana aponta os maiores riscos políticos e econômicos previstos para este ano, entre eles, a relação entre Estados Unidos e China e o descontentamento em países da América Latina.
No caso do Brasil, a consultoria vê como um avanço as reformas propostas pela equipe econômica, com destaque para a da Previdência, aprovada em outubro, e para a tributária, em tramitação no Congresso. Mas alerta para o risco de as medidas não se converterem no crescimento econômico esperado.
A Eurasia destaca que o momento pelo qual o mundo passa, de deterioração das relações entre os países e consequente redução do comércio, é mais propício para uma crise global. Ao mesmo tempo, os recursos disponíveis para que governos e setor privado lutem contra isso estão cada vez mais escassos.
"A economia global, depois de ter emergido da grande recessão de 2008 com a mais longa expansão do período pós-guerra, agora está arrefecendo. Mais economistas esperam uma recessão em 2020 ou 2021. E o o mundo está entrando agora em uma recessão geopolítica cada vez mais profunda, com uma falta de liderança global como resultado do unilateralismo dos EUA, do declínio da Rússia, que quer minar a estabilidade e a coesão dos Estados Unidos e de seus aliados, e um crescente empoderamento da China. E, finalmente, as mudanças climáticas, que já atrapalham o avanço econômico. Isso só vai aumentar com o tempo", diz.
Esse cenário faz com que 2020 seja um ponto de inflexão na história. "O ano reúne uma combinação de fatores negativos que não presenciamos em gerações", diz a a consultoria.
Veja quais são os dez riscos previstos pela Eurasia neste ano:
As instituições americanas estão entre as mais fortes e resilientes do mundo. Em 2020, no entanto, serão testadas de maneira sem precedentes, segundo a Eurasia. Por isso, a política americana é tratada como risco pela primeira vez no ranking.
Um dos eventos mais relevantes do ano no país serão as eleições presidenciais de novembro, que podem dar a Donald Trump a reeleição.
"Será o pior clima político para uma eleição nacional que os EUA experimentam desde a (efetivamente fracassada) eleição de 1876", escreve a consultoria, em referência a um pleito contestado que gerou até especulações de uma retomada da Guerra Civil (1861-1865) e elegeu o republicano Rutherford Hayes.
Trump passa por um processo de impeachment nos Estados Unidos por ter pressionado a Ucrânia a investigar o ex-vice-presidente Joe Biden, um potencial rival nas eleições de 2020. Por esse motivo, a Eurasia acredita que muitos americanos podem achar ilegítima uma possível vitória do republicano em novembro, levando a um descontentamento social significativo.
Apesar de o pedido de seu impeachment ter sido aprovado na Câmara em dezembro, é remota a chance de passar no Senado, que tem maioria republicana.
"Em outras palavras, a eleição de 2020 é um 'Brexit americano'. Trata-se de uma votação polarizada na qual o risco é menos o resultado do que a incerteza política. É um território desconhecido e, desta vez, em um país onde a incerteza cria ondas de choque no exterior", diz a consultoria.
A Eurasia considera que a disputa entre Estados Unidos e da China na esfera tecnológica pode, sozinha, gerar os mais relevantes impactos geopolíticos na globalização desde o colapso da União Soviética.
Essa disputa é chamada pela consultoria de "grande dissociação" e tem potencial para influenciar não só o mercado global de tecnologia — estimado em US$ 5 trilhões — mas uma série de outras indústrias e instituições: da mídia e do entretenimento às pesquisas acadêmicas.
As duas maiores economias do mundo devem continuar usando ferramentas econômicas nessa luta, como sanções, controle de exportações e boicotes. E "vai ficar mais difícil para outros países não serem pegos pelo fogo cruzado", diz a consultoria.
Um dos agravantes dessa tensão pode ser a alta probabilidade de reeleição da presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen. A líder não tem a amizade de Pequim por ser uma defensora da democracia na região, o que a coloca, automaticamente, como aliada americana.
De qualquer forma, os Estados Unidos não devem perder a chance de reafirmar seu apoio militar ao regime de Tsai, o que tende a incomodar o governo chinês, que vê isso como interferência nos seus assuntos domésticos.
O que vem como consequência disso, segundo o relatório, seriam medidas duras tomadas pelos EUA contra a China, incluindo sanções financeiras, controle tecnológico e esforços para limitar o fluxo cambial americano a empresas chinesas. Essas medidas, por sua vez, teriam o revide do país asiático.
Num cenário em que as tensões internacionais deixam o mundo cada vez mais à deriva, sem poder contar com a liderança de órgãos como o G-20, que reúne as economias mais desenvolvidas do mundo, muitos esperam que o setor privado possa ocupar essa lacuna na governança global, principalmente em áreas como mudança climática, alívio da pobreza e até comércio e liberalização do investimento.
"Nós somos céticos. Especialmente porque as empresas devem enfrentar neste ano mais conflitos no que diz respeito à regulação e ao ambiente geopolítico", diz a consultoria.
Em outras palavras, não conte com as multinacionais, pois elas estarão "ocupadas" lutando contra pressões regulatórias vindas de movimentos populistas anti-comércio, particularmente em mercados desenvolvidos.
"Acordos multilaterais de livre comércio deram chances às multinacionais de alavancarem seus negócios e reduzirem pressões regulatórias, suavizando custos de compliance. Não deve ser assim em 2020, com os governos buscando acordos bilaterais que sejam produtivos isoladamente", diz o relatório.
Os impactos das políticas sociais controversas do segundo mandato do primeiro-ministro indiano Narendra Modi devem ser sentidos em 2020, segundo a Eurasia. Medidas recentes anunciadas pelo líder, reeleito em maio do ano passado, beneficiam a cultura hindu em detrimento da muçulmana.
Em dezembro, parlamentares indianos aprovaram uma lei que garante cidadania a pessoas do Paquistão, Bangladesh e Afeganistão residentes no país - desde que não sejam muçulmanas. Há cerca de 200 milhões de muçulmanos vivendo na Índia.
Mais cedo, em outubro, o primeiro-ministro anunciou a divisão do estado de Jammu e Caxemira e tirou da região, de maioria muçulmana, o status de estado.
Esse foco na agenda social terá efeitos prejudiciais para a política externa da Índia, prevê a Eurasia.
"Suas ações em direitos humanos estarão sob escrutínio mais minucioso por muitas nações, e sua reputação será atingida. Relações da Índia com os EUA enfrentarão um desafio em 2020. Alguns membros do Congresso dos EUA estão preocupados com as políticas da Índia em geral, e em particular com seus planos de comprar o sistema de defesa antimísseis S-400 da Rússia. O Congresso poderia impor sanções", diz o relatório.
A situação fiscal da Índia é precária, alerta a Eurasia, pois o governo enfrenta um déficit fiscal crescente, marcado pelo baixo desempenho do imposto sobre bens e serviços estabelecido no primeiro mandato de Modi.
"Uma economia enfraquecida, por sua vez, alimentará nacionalismos e protecionismos, pesando sobre o país em 2020", diz.
A União Europeia (UE) estaria sendo ingênua em esperar que seus principais parceiros comerciais sigam as regras do jogo? Grandes líderes da região, a presidente da comissão executiva da UE, Ursula von der Leyen, e o presidente francês, Emmanuel Macron (foto acima), pensam que sim. Essa postura pode fazer com que o bloco, que costumava se alinhar aos interesses de Washington, mude de posição mais vezes.
No setor de regulamentação, essa postura vem sendo vista na luta do bloco contra gigantes norte-americanos de tecnologia, por meio da utilização inovadora da legislação local.
Já no comércio, a opinião da Eurasia é de que a UE levará abordagens mais assertivas a novas áreas, por exemplo, tornando o cumprimento do acordo climático de Paris uma condição para novos negócios.
A opinião da consultoria é que, apesar de não estar interessado em manter um exército próprio europeu, o bloco tomará medidas para usar o maior mercado interno do mundo para quebrar barreiras às trocas militares e tecnológicas. Isso pode ser visto como uma afronta pelos EUA, especialmente porque poucos países europeus cumpriram suas promessas na OTAN em gastos com defesa.
O mundo falhou em atingir a meta perseguida por dezenas de países, quando assinaram, há cinco anos, o acordo de Paris, no qual se comprometiam a adotar medidas que limitasse o aquecimento global a 2º Celsius até o final do século.
"Este ano, esse fracasso levará a decisões corporativas ruins, interrupções operacionais dos negócios e instabilidade política", diz a Eurasia. Atualmente, o mundo está no ritmo de um aquecimento de 3,5 graus no período.
A política dos EUA em relação às principais nações lideradas pelos xiitas no Oriente Médio está falhando, segundo a Eurasia. "Isso cria riscos significativos para a estabilidade regional, incluindo um conflito letal com o Irã e pressões crescentes no preço do petróleo", diz em relatório.
O assassinato do general Qasem Soleimani, comandante da Força Quds da Guarda Revolucionária iraniana, ordenado por Trump escalou as tensões já significativas entre EUA e Irã no dia 2 de janeiro.
O risco aparece em oitavo lugar na lista, segundo a Eurasia, por conta de "fortes pressões estruturais contra uma guerra".
O descontentamento da população latino-americana mantém o risco de instabilidade política na região. As queixas dos eleitores incluem crescimento econômico lento, corrupção e serviços públicos de baixa qualidade. Um ponto que dificulta acordos, segundo o relatório, é o fato de as sociedades estarem profundamente polarizadas.
"Esse descontentamento reduz a capacidade dos governos de colocar em prática medidas necessária de ajuste fiscal. Ao mesmo tempo, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e investidores pressionarão por prudência fiscal, mas os governos em toda a região responderão sem entusiasmo. Essas pressões gerarão riscos na América Latina: protestos ocorrerão, saldos fiscais se deteriorarão, resultados de eleições serão menos previsíveis, populistas e políticos oposicionistas ficarão mais fortes", diz.
Entre seus pares, o Brasil é colocado pela Eurasia como "economicamente promissor": "Bolsonaro conseguiu aprovar a reforma previdenciária, marco histórico para o país, e segue atuando para aprovar novas reformas, inclusive nos impostos". O clima no Brasil pode virar, porém, se as mudanças que estão sendo implementadas atrasarem ou não forem convertidas em melhora econômica para a população.
"Isso, por sua vez, limitaria a capacidade de Bolsonaro de implementar reformas, potencialmente transformando sua administração em direção a um nacionalismo mais aberto e/ou ajudando a fortalecer a oposição em 2022. De qualquer forma, um desafio para a maior economia da região".
O Presidente Recep Tayyip Erdogan (foto) entrou em um período de declínio político e queda de popularidade, sobretudo entre os mais jovens. Este ano, porém, sua fraqueza o levará a atacar, prevê a Eurasia.
Erdogan tem uma longa história de comportamento provocativo em respostas a ameaças, provocando confronto com estrangeiros e críticos residentes na Turquia. Para a consultoria, sua resposta danificará ainda mais a economia turca, que já está em dificuldades.
São previstos para este ano atritos sobretudo com os Estados Unidos. No primeiro semestre, entram em vigor sanções aprovadas pelo congresso norte-americano contra o país, o que deve comprometer tanto a reputação turca quanto o ambiente de investimentos no país.
As medidas incluem a redução nas vendas no setor militar para a Turquia, além de ações contra alguns oficiais turcos.
Está previsto para este ano também o julgamento do banco turco Halkbank em Nova York. "Isso poderia resultar em uma multa de bilhões de dólares e quase certamente envolverá a revelação de detalhes embaraçosos sobre Erdogan ou aqueles ao seu redor", diz a Eurasia. O banco teria auxiliado o Irã a escapar de sanções dos EUA.
As reações de Erdogan na esfera econômica poderão criar um novo conjunto de riscos para o país, à medida que as sanções pressionarem a economia.
"Erdogan pode usar meios não convencionais para defender a moeda, o que pode sair pela culatra e prejudicar a confiança dos investidores. O presidente tende a ordenar que os bancos estatais intervenham no mercado com vendas de moedas estrangeiras. A Turquia enfrenta um risco significativo de controle de capital este ano", diz o relatório.