Favela em São Luís: o Brasil não é só isso, mas metade do país sofre com a falta de saneamento (.)
Da Redação
Publicado em 10 de outubro de 2010 às 04h11.
Fabiana Castanho, de 32 anos, gerente numa empresa de informática em São Paulo, recebeu no ano passado um aumento salarial de 800 reais. Ela e o marido, o funcionário público Wilson, com quem tem uma filha de 5 anos, viram a renda familiar crescer para 4 500 reais mensais. O dinheiro extra foi vertido para o consumo. Em janeiro, a família passou uma semana no Nordeste. Quando voltou, Fabiana percebeu que não teria como pagar a prestação de uma moto Sundown Future que havia adquirido pela financeira Itaú meses antes. Após oito meses de inadimplência, fez um acordo com a financeira e, no início de maio, devolveu a moto. Com outras pendências - como uma dívida de 10 000 reais no cartão de crédito, parcelada em 36 vezes -, o nome de Fabiana está no Serviço de Proteção ao Crédito. "Eu pretendo um dia ter um bom relacionamento com o dinheiro, mas hoje não consigo." Em contraste com a situação da família Castanho, o exemplo de Márcia Camargo, de 44 anos, assistente administrativa de uma pequena empresa paulistana, mostra que é possível guardar dinheiro até com o orçamento apertado. Separada há dois anos, Márcia viu a renda cair de 4 500 para 2 500 reais mensais desde que deixou o marido. Mesmo assim, não se desesperou. Usou a experiência como administradora para cortar gastos supérfluos e organizar o fluxo de caixa. "Anoto os gastos com moradia, educação do meu filho, plano de saúde e outros itens. Minha planilha está fechada até o fim do ano que vem", diz ela. Graças a um controle rígido, Márcia tem conseguido guardar até 20% do salário. "Fiz um curso gratuito na Bovespa para aprender a investir. Hoje, me preocupo muito com o futuro."
As histórias de Fabiana Castanho e Márcia Camargo ilustram o dilema vivido pelo Brasil hoje: aproveitar o bom momento ou poupar para o futuro? Eis uma dúvida tão antiga quanto o próprio homem. A cada instante, convivemos com estímulos emocionais que nos convidam a aproveitar a vida e esquecer o amanhã - é o nosso lado cigarra, na imagem criada pela fábula de La Fontaine. Mas dentro de nós vive também a formiga, que tenta nos trazer à razão. Muito do que somos, seja individualmente, seja como nação, resulta de como arbitramos os dois estímulos. Coletivamente, sociedades que conseguem abrir mão do consumo - ou de parte dele - no presente costumam ser recompensadas mais à frente. Afinal, consumo e poupança saem de uma fonte só: a renda. Os economistas costumam dizer que a poupança de hoje é uma garantia para o consumo no futuro. E viceversa: consumir já é abrir mão de recursos posteriormente. Para o país, está ficando claro que há necessidade de poupar mais, a fim de ampliar a capacidade de investir e assegurar um crescimento econômico prolongado - única maneira de a grande massa de brasileiros realmente melhorar de vida.
A taxa de poupança nacional tem oscilado entre 16% e 18% do produto interno bruto nos últimos anos, com um nível de investimento semelhante. É suficiente para manter um crescimento de cerca de 4,5% ao ano sem gerar inflação. O ritmo atual da economia brasileira, caminhando para um crescimento em 2010 entre 6% e 7%, não teria como ser sustentado por mais tempo sem que gerasse distorções - a pior delas, o descontrole dos preços. Isso já começou a acontecer, o que motivou o Banco Central a elevar os juros básicos no final de abril. Analistas também se preocupam com a volta do déficit nas contas com o exterior, um velho problema nacional. O déficit projetado neste ano é de 2,5% do PIB e teme-se que, se o país não refrear o crescimento, será preciso trazer mais dinheiro de fora. "Nossa escolha até agora foi tentar crescer mais sem aumentar a poupança. Se isso continuar, as contas externas vão se deteriorar", diz Sérgio Vale, economista da consultoria MB Associados. De acordo com ele, para que isso não piore tanto, o governo terá de fazer uma "escolha de Sofia", atuando para desacelerar o consumo das famílias, responsável, em seus cálculos, por 85% do crescimento de 2006 para cá.
A discussão sobre poupança esquentou nos últimos tempos graças ao desempenho impressionante da China, cuja taxa de crescimento vem se mantendo superior a 10% ao ano. Em boa medida, o ritmo chinês está ancorado numa taxa de poupança e de investimento que se mantém acima de 40% desde 2003. Pelas enormes diferenças entre os dois países, seria quase impossível ao Brasil atingir os padrões chineses. E, pelos sacrifícios que isso obrigaria a sociedade brasileira a fazer, provavelmente nem seria desejável. As soluções chinesas são fruto de um regime de governo autoritário, o que os brasileiros já rejeitaram. A política de um filho por família reduziu o número de dependentes a ser sustentados por quem trabalha. O fato de o Estado chinês não oferecer quase nada de benefícios sociais obriga as pessoas a fazer economia para cobrir essas necessidades. Além disso, as estatais chinesas são privilegiadas com empréstimos do governo e quase não distribuem lucros - que são retidos para investir. Porém, as realizações que a China vem obtendo, principalmente na construção de estrutura logística e urbana, merecem uma reflexão no sentido de que talvez a virtude esteja no meio do caminho. Os chineses constroem estradas, ferrovias, portos, usinas e cidades numa dimensão que faz inveja ao Brasil, com gargalos de transporte por todos os lados e com metade da população ainda sem serviço de esgoto. Mesmo considerando que nem tudo o que os chineses fazem é de qualidade - basta ver os prejuízos ao meio ambiente -, não há dúvida de que o avanço é notável. De acordo com um estudo feito pela MB Associados a pedido de EXAME, um aumento da taxa de poupança de 16% para 22% do PIB permitiria ao Brasil elevar o investimento de 18% para 25% ao ano e, com isso, crescer 6% sem pressão inflacionária.
No plano das nações, os governos têm a obrigação de pensar no longo prazo e ser responsáveis, tomando decisões que, se desagradáveis no imediato, permitam um futuro melhor aos cidadãos. "O problema do Brasil é que somos uma sociedade esquizofrênica", diz Cláudio Haddad, presidente da escola de negócios Insper. "Queremos crescer rapidamente, mas tomamos decisões que jogam contra isso." Ele se refere ao fato de que o governo, ao mesmo tempo que tributa demais quem produz, mantém privilégios de alguns - como as elevadas pensões dos funcionários públicos -, distribuindo o custo a todos. Além disso, o Estado investe pouco, cerca de 2% do PIB, e aplica os recursos com baixa eficiência. Ao final de tudo, fecha as contas no vermelho e funciona como um "despoupador" - ou seja, além de não contribuir, gasta parte da poupança feita pelo setor privado. Um estudo elaborado pelos pesquisadores Mansueto Almeida e Alexandre Manoel da Silva, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, mostrou que a média de poupança privada no Brasil subiu de 12% do PIB entre 1999 e 2002 para 18,3% no período de 2003 a 2006. Nos mesmos intervalos, a poupança do governo caiu da média de 1,6% para -1%. Ou seja, o Estado claramente passou a ser um redutor das economias do país.
Aí está exatamente a oportunidade mais clara para o país ampliar sua poupança. Na Coreia do Sul, as famílias poupam o equivalente a 4,5% do PIB, cerca da metade do poupado nos lares brasileiros. Lá, porém, o governo contribui com uma poupança de quase 12% da riqueza gerada. Não se sabe ao certo tudo o que induz à elevação da poupança das famílias e das empresas - é uma das áreas em que os economistas não conseguiram chegar a um consenso. Medidas que funcionaram em alguns países fracassaram em outros. Quando o assunto é poupança, a única certeza é que o governo tem um papel central, seja deixando de ser gastador para ser mais poupador e investidor, seja na criação de um ambiente que estimule os negócios, o investimento e a poupança privada. Cuidado nas contas do governo - eis a principal lição para que, como país, sejamos menos parecidos com Fabiana e mais a cara de Márcia.