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Da Redação
Publicado em 18 de março de 2010 às 11h22.
A desordem mundial provocada pelo desastre financeiro no mercado americano de hipotecas pode ser uma excelente oportunidade para o Brasil. A tendência, nessas horas de neurastenia, é sair à procura das desgraças que a economia brasileira pode sofrer com a crise. Provavelmente é muito mais útil, no caso, aproveitar o momento e olhar um pouco mais para o que há de errado com o próprio Brasil e menos para os erros cometidos lá fora. Em primeiro lugar, ninguém sabe, nem por alto, o que vai realmente acontecer lá fora. Quanto ao que pode acontecer aqui dentro, é certo que esse temporal encontra o país em condições de resistência muito melhores do que as que tinha em outras ocasiões; é certo, também, que o Brasil não é uma fortaleza imune aos problemas do mundo mau que existe por aí, como imaginavam os governos militares nas crises econômicas ocorridas em sua época. É o que se pode declarar no momento -- e nada, ou quase nada, a mais. Em segundo lugar, não adianta coisa nenhuma, como fez o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, dizer que "não é possível" que o preço da baderna financeira americana seja pago por países que nada fizeram para provocá-la. É possível, sim -- e, se isso tiver de acontecer, vai acontecer. O que realmente ajudaria na prática, neste momento, seria tomar consciência de um fato essencial: as depredações causadas pela crise do subprime não provocaram nenhum dos problemas imediatos que mais prejudicam o bem-estar dos brasileiros ou atrasam o crescimento do país. Esses problemas são de produção genuinamente nacional -- e em relação a eles, diferentemente do que ocorre em Wall Street, o governo pode agir. Se não age, ou age mal, ou demora demais para agir, a culpa não é de ninguém a não ser dele mesmo.
Eis aí, justamente agora, o caso do PAC, uma demonstração clássica de como funciona a alma do governo em relação às necessidades brasileiras na área de infra-estrutura -- um dos itens mais urgentes no rol de calamidades nacionais à espera de solução. Há poucos dias, com a presença em peso do governo, a ministra Dilma Rousseff, acumulando o papel dos quatro evangelistas, anunciou a boa-nova: o PAC está bombando. Com gráficos, fotos e distribuição de selos verdes, amarelos e vermelhos para indicar obras que estão no prazo ou adiantadas, perigando atrasar ou em atraso, a ministra da Casa Civil deu conta do sucesso do governo em seus esforços para melhorar as coisas. Mais uma vez, porém, o que se teve foi muito vento e pouco pastel. Fala-se, para demonstrar a profunda disposição do governo em resolver de vez a questão da infra-estrutura, nos "18 bilhões de reais" que o Orçamento de 2008 reserva para o PAC. E o que significa, mesmo, essa soma? É menos que o lucro da Petrobras no ano passado, levando-se em conta que nos nove primeiros meses de 2007 a empresa lucrou 16,5 bilhões de reais -- ou o equivalente ao que o governo do estado de São Paulo deve investir neste ano.
Quando se desce às obras, individualmente, a distância entre desejos e realidades não fica menor. Tome-se, por exemplo, a usina de Belo Monte, no rio Xingu. Tudo o que existe de concreto na usina de Belo Monte é o rio Xingu, cujas águas continuam a correr como correm há milhares de anos, indiferentes aos selos da ministra Dilma. Não houve até agora nem a licitação para as obras -- e assim mesmo essa licitação, oficialmente prevista para 2009, foi adiada, de junho para outubro. Ninguém é capaz de garantir quando a obra será realmente iniciada; imagine-se, então, quando será terminada. Nenhum problema: Dilma cravou um belo selo verde na usina de Belo Monte. Dá para entender. Todo mundo que já lidou com marcas coloridas em gráficos de desempenho -- em empresas, clubes ou qualquer outro lugar onde se colocam marcas coloridas em gráficos de desempenho -- sabe a tentação que é carregar a mão no verde. Gráficos são apresentados para a apreciação de chefes, e chefes, sabidamente, não gostam de marcas amarelas ou, Deus nos livre, de marcas vermelhas. Não deu outra. A apresentação foi uma floresta de selos verdes: houve só 2% -- isso mesmo, 2% -- de vermelho, porcentagem de eleição na Albânia comunista.
Tanto quanto a situação miserável da infra-estrutura brasileira, a crise do papelório americano não é responsável pelo mosquito da febre amarela nem pela irritação do ministro da Saúde com os brasileiros que têm pressa em se vacinar. Não são os banqueiros envolvidos nessa vigarice, nem o Fed, os culpados pelo tráfico aberto de cargos públicos ora em curso no Brasil. Não foram eles que nomearam o senador Edison Lobão ministro de Minas e Energia. Não é por sua culpa que o rodoanel, obra essencial para São Paulo e de responsabilidade do governo do estado, está sendo construído há 18 anos -- e só tem 20% do trabalho concluído. Nesse ritmo, levará 90 anos para ficar pronto.
Essas, como diria Noel Rosa, são nossas coisas, são coisas nossas.
Sétimo dia
Todo mundo sabe que há certas coisas na vida que só acontecem com o Botafogo. Há outras que só acontecem com a esquerda brasileira. No resto do mundo, o socialismo acabou por falência múltipla de órgãos, tanto no seu conjunto de idéias como nos regimes que comandava. Seu fim, do ponto de vista simbólico, teve um enterro de primeira classe e um cenário grandioso, com a queda do Muro de Berlim. No Brasil, o projeto socialista da esquerda e do seu partido-guia, o PT, está acabando nos cartões de crédito da ex-ministra Matilde Ribeiro.
É verdade que a questão não é só com ela. O PT teve o azar de nascer fora de hora, justamente na época em que suas idéias estavam a caminho da UTI; quando chegou enfim ao governo e ia implantar o socialismo no Brasil, não havia mais socialismo para ser implantado. É verdade, além disso, que colaborou o máximo possível para o seu desmanche, com o mensalão, a saga da "quadrilha dos 40", os negócios com a "base aliada" e outros tantos negócios. Mas a ex-ministra Matilde, que foi titular da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, tem um papel especial nisso tudo. Talvez ninguém tenha conseguido, como ela, deixar tão claro para o entendimento do público onde acabou caindo, na realidade da vida cotidiana, o projeto socialista do PT. "Recursos não contabilizados" e outras complicações da linguagem de colarinho branco podem oferecer alguma dificuldade de compreensão. Mas cartões de crédito? Isso todo mundo entende na hora.
Como se sabe, Matilde, pessoalmente, gastou mais de 170 000 reais de dinheiro público em 2007 utilizando os cartões de crédito que o governo fornece para determinados funcionários pagarem gastos realizados a trabalho; é nível para um "platinum", como dizem as operadoras de cartões de crédito. Só num hotel cinco estrelas ela usou seu cartão 22 vezes em 2007. Sacou-o, também, em estabelecimentos como o Bar Amarelinho, no Rio de Janeiro, e até para pagar uma despesa de 461,16 reais num free shop -- dinheiro que só devolveu quando o caso veio a público e assim mesmo com três meses de atraso. A alegação em favor de Matilde é que 170 000 reais são uma mixaria se comparados, por exemplo, aos 130 bilhões que o governo federal vai gastar em 2008 no pagamento de pessoal -- ou mesmo com os 75 milhões que gastou durante o ano passado na soma dos cartões ofertados a colaboradores como a ex-ministra da integração racial. Tornou-se um hábito, no governo e em sua volta, dizer que esse tipo de cobrança não é sério. Seria bom se não fosse. Infelizmente é.
É sério, em primeiro lugar, porque toda despesa final é composta da soma de cada uma das suas partes; disso não há como fugir. Mas o problema, aí, vai além da aritmética. Os cartões de Matilde mostram o exato grau de respeito que ela e o PT têm em relação às suas propostas de salvar o Brasil. Em geral, é nas miudezas do cotidiano, e não nos grandes debates, que as pessoas aparecem como realmente são -- e onde se comprova o valor real das idéias que pregam. A igualdade racial, supostamente, é um componente essencial do projeto socialista que a esquerda tem para o Brasil. De que maneira alguém pode promover a implantação do projeto socialista do PT hospedando-se 22 vezes num hotel cinco estrelas no decorrer de um ano? A ex-ministra -- e seu entorno -- acha, naturalmente, que está tudo bem. Assiste, sem perceber, à sua própria missa de sétimo dia.