Economia

Será que é certo o Estado taxar as remessas postais internacionais?

OPINIÃO | A minha resposta seria: não sei. Ou melhor, depende

Publicado em 16 de maio de 2024 às 16h10.

Recentemente, ao incluir a volta da cobrança de Imposto de Importação nas compras abaixo de cinquenta dólares, o Congresso ressuscitou o debate: Será que é certo taxar as “comprinhas” pela Remessa Postal Internacional?

A minha resposta seria: não sei. Ou melhor, depende.

Se perguntarmos para a parcela da população chamada de esquerdista ou comunista, ou para a outra parcela fã da ditadura militar que se autoproclama patriota, tem que tributar para proteger as empresas e os empregos no Brasil.

Agora, se a mesma pergunta for feita àquela parcela que se diz liberal, mas é na verdade libertária, pois mira no Adam Smith e acerta no Ludwig von Mises, ela dirá que não deve haver tributação alguma - nem regulação.

Fazem coro com estes últimos milhares, quiçá milhões, de pessoas que só querem comprar suas mercadorias por um preço bem baratinho.

E são essas pessoas que me lembram o Dr. House, protagonista da série de TV com mesmo nome, que sempre dizia: “everybody lies” (todo mundo mente), pois dentre os milhões de pacotes que chegaram ao Brasil (quase um milhão por dia útil) em 2022, apenas 1,93% das remessas foram declaradas aos órgãos competentes.

Aqui é importante lembrar que até então as compras até US$ 50,00 nunca foram isentas: o limite de isenção era para o envio de pessoa física para outra pessoa física, não para venda online, enviada por uma empresa.

Já que não eram isentas antes, o que acontecia na verdade era uma burla da tributação devida com o tsunami diário de pacotes, cuja fiscalização mostrou-se impraticável, e tornou a operação uma questão de “sorte” para o destinatário.

A legislação para as remessas pelos Correios (ECT) ou empresas de courier é da década de 80, quando o comércio entre as nações era muito mais restrito, a China recém começava suas reformas econômicas (ou mesmos os outros “Tigres Asiáticos”, como seriam chamados nos anos 90) e – principalmente – a internet recém engatinhava.

É essa convergência de circunstâncias que resultou no boom das compras online que vivenciamos já há alguns anos.

Nesta seara o Brasil deixaria o Dr. House perplexo: para não pagar imposto, as pessoas envolvidas, digamos, equivocavam-se tanto no valor da encomenda quanto na personalidade jurídica do remetente (pessoa física ou jurídica). Recentemente a RFB divulgou que uma única “pessoa física” enviou mais de 16 milhões de pacotes do exterior ao Brasil.

Portanto, a norma editada pelo governo (Programa Remessa Conforme) em 2023 é que, de fato, instituiu a isenção do tributo federal até os US$ 50,00, restando a cobrança do imposto estadual (ICMS).

Como resultado, no primeiro trimestre de 2024 o índice de declarações, que era de 1,93% em 2022, saltou para quase 100%.

E, quando o assunto parecia ter caído no esquecimento, vem o Congresso e acende a discussão de novo, com o argumento – retirado do relatório - de não gerar desequilíbrio com os produtos fabricados no Brasil, que pagam todos os impostos”.

Acredite: até nos Estados Unidos da América - o país que sempre é nossa referência quando se fala em liberdade econômica e baixos impostos – começa a existir um debate em torno da isenção de imposto sobre as mercadorias vindas do exterior diretamente ao consumidor. No caso deles, a isenção é de inimagináveis (para nós) oitocentos dólares.

Talvez seja esse o problema. O debate fica sempre restrito ao uso extrafiscal do tributo – seja como mecanismo de controle de demanda, seja como proteção às empresas nacionais.

Ou então é só arrecadação pura e simples mesmo...

Só que ainda permanecemos nessa queda de braço entre um Estado que constitucionalmente tem múltiplas atribuições, que são universais e que não são baratas (não vou entrar no mérito do mau uso de recursos, corrupção etc. porque é o outro lado da moeda) e uma população que vê seu poder de compra minguar dia após dia e tem nas compras nesses sites da China e afins uma saída mais barata para suprir suas necessidades.

Sim, porque essa mesma gente é bombardeada diariamente pela propaganda e pelos influenciadores digitais exibindo suas riquezas, suas marcas famosas, seus gadgets. Seria a lei da oferta e da demanda em ação, só que o Brasil cria demandas com ofertas proibitivas para o salário médio nacional.

Entretanto, hoje em dia a China é logo ali. Como diz o clichê: está na palma da mão. É o mundo globalizado.

Por outro lado, certas coisas ultrapassam a tributação: não podemos simplesmente deixar a “porteira aberta” porque vem muito produto impróprio de lá, como substâncias perigosas para a saúde, sementes e outras ameaças biológicas para fauna e flora brasileiras, mercadorias falsificadas, ou mesmo proibidas. A lista é enorme.

Será que todo consumidor em sã consciência deveria mesmo confiar cegamente nesses produtos sem fiscalização?

A ação do Estado não deve – ou não deveria – ser só focada na arrecadação, mas também na proteção do destinatário final.

Então, respondendo à pergunta do começo do artigo, eu não sei qual o imposto deveria ser aplicado às encomendas, nem me atrevo a fazê-lo: isso é trabalho da administração tributária, chefes do Executivo e legisladores, mas qualquer resposta não deveria ser só uma alíquota.

Falando especificamente nela, há campanhas que propõem um nivelamento entre as obrigações de pessoas físicas e jurídicas para importar, seja pelos Correios, seja no despacho aduaneiro comum. Faz sentido. Afinal, com volume de compra uma empresa pode até conseguir um preço mais barato e deixá-la mais competitiva, por exemplo.

Uma nova pergunta nesse caso seria: se assim fosse, será que de fato diminuiria o preço aqui, ou só encareceria o preço de lá?

Independentemente da resposta, a população - justamente a mais carente, que acaba sendo empurrada para o serviço público de saúde - precisa ter tranquilidade para saber que aquele brinquedinho que comprou em um site no exterior para o filho não vai machucá-lo por não ter sido testado; ou que aquele conjunto de maquiagem não é prejudicial à saúde; ou que aquele tênis “pirata” não vai causar um problema ortopédico. Não faltam exemplos.

Neste contexto, ao mesmo tempo em que a alfândega não deve ter como único foco cobrar impostos das mercadorias importadas – mesmo que alguma tributação deva existir - o controle sobre o que entra no país ultrapassa a questão arrecadatória.

Concluindo, peço escusas aos libertários, mas precisa haver uma certa regulação do Estado nas importações, tanto com tributo quanto com controle dos demais órgãos governamentais, e me desculpo com os comunistas e patriotas: as empresas nacionais que sejam mais competitivas.

Então não seria legítimo para a indústria e o comércio nacionais buscarem igualdade de armas contra os produtos importados? A meu ver, claro que é. Só que talvez o caminho não seja o protecionismo, mas uma abertura verdadeira do mercado.

Cláudio Cabral Fay de Azevedo Júnior é Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil em Caxias do Sul/RS.

* A opinião do autor não reflete necessariamente a opinião do órgão em que ele trabalh

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