Ofertas no varejo: em todo o Brasil, número de famílias endividadas bate recorde (Leandro Fonseca/Exame)
Carolina Riveira
Publicado em 19 de janeiro de 2023 às 06h06.
A combinação entre inflação corroendo a renda real e a maior facilidade de acesso a crédito na última década faz o endividamento começar o ano como uma das grandes preocupações para as famílias brasileiras. Na cidade de São Paulo, capital mais rica do Brasil, o ano de 2022 teve o maior número de famílias com contas atrasadas em 12 anos, segundo a Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP).
A taxa de famílias com algum tipo de dívida (do financiamento de uma casa ao uso do cartão de crédito) pulou de 44% em janeiro de 2010 para 76% em novembro de 2022, último mês com dados disponíveis. Os números são da série histórica da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor, analisada pela EXAME.
Sozinho, o número de famílias contraindo dívida não é ruim, pois mostra aumento do acesso ao crédito. O problema é que, desse total, os lares paulistanos com contas em atraso também subiram de 14% no início de 2010 para quase 26% no fim de 2022.
O crescimento da inadimplência ocorreu de forma mais acentuada nos grupos de renda mais baixa, embora tenha aumentado em ambos os casos na última década:
"Houve claramente um cobertor curto. Vimos alta de inflação, principalmente em 2021, e perda de poder de compra, então não sobra dinheiro para pagar dívida. O que explica a alta na inadimplência", diz o assessor econômico da FecomercioSP, Altamiro Carvalho.
Um raio-x sobre o crescimento do endividamento nos últimos anos mostra as maiores possibilidades de acesso a crédito, mas também o tipo de desafio que as famílias enfrentam quando a dívida vira inadimplência.
O crédito consignado, por exemplo, era fonte de dívidas de 1% das famílias em janeiro de 2010, taxa que subiu para 7% em novembro de 2022. A alta mais recente ocorreu sobretudo a partir de 2020. O uso do consignado pode ser uma boa notícia se houver planejamento financeiro, uma vez que os juros são menores; mas também pode sinalizar que famílias têm usado crédito para complementar o orçamento doméstico, aponta a Fecomercio.
Já o cartão de crédito como uma das dívidas, em parte pela popularização do formato e maior concorrência entre os bancos, subiu de 70% para 85% das famílias entre 2010 e 2022. Um dos riscos é que esse uso, por exemplo, implica juros que superam os dois dígitos por mês.
Em contrapartida, o percentual de famílias com financiamento de carro e casas caiu nos anos de pandemia. A modalidade teve forte alta entre 2010 e 2014, novamente um pico em 2020 (com os juros baixos) e passou a cair desde então.
Vale notar que esse tipo de dívida segue mais acessível às classes mais altas:
O endividamento por si só tem vários aspectos positivos, reforça Carvalho, da FecomercioSP. É mostra de que o país tem conseguido oferecer crédito, ferramenta crucial ao crescimento, tanto na abertura de negócios quanto na possibilidade de aquisição de bens por parte das famílias. Poucos conseguiriam, à vista, comprar bens mais caros, como alguns eletrodomésticos ou até mesmo uma casa.
"Nunca chegamos a um nível de endividamento nesse patamar, o que tem lados bons e ruins. Crédito é a alavanca da economia. Nos EUA, é acima de 90%. Nenhum país cresce sem crédito", diz, complementando que, no início dos anos 2010, um endividamento na casa dos 40% "também era alvo de críticas" pela baixa oferta de crédito dos bancos no mercado.
O desafio está em quando essa dívida, somada a um cenário macroeconômico desafiador, passa a afetar sobremaneira a situação financeira das famílias.
Somada à inflação, a alta brusca de juros que vive o Brasil entre 2021 e 2022 também influencia no descontrole. A taxa Selic passou de 2% em março de 2021 (sua mínima histórica) para 13,75% atualmente.
Como a Selic impacta todos os demais tipos de financiamentos, famílias que contraíram dívidas com a Selic em baixa podem, no momento, ter dificuldade em honrar os compromissos caso os salários não tenham subido na mesma proporção. Por outro lado, com a inflação fechando 2022 em 5,8% (abaixo dos mais de 10% vistos em 2021), famílias que receberam reposição inflacionária no ano anterior podem ter visto alguma melhora em seu poder de compra, diz o economista.
Para além de São Paulo, situação parecida com a inadimplência afeta todas as capitais, segundo um outro levantamento da Fecomercio sobre a situação até o fim do primeiro semestre do ano passado. O percentual de famílias com alguma dívida nas capitais brasileiras passou de 67% em junho de 2020 para 78% no primeiro semestre de 2022, o maior patamar da série histórica iniciada em 2010.
A inadimplência nas capitais chegou a 29%, também o maior da série histórica. "É uma variável que merece atenção quanto a sua evolução futura", diz o estudo.
Paralelamente, a renda média registrou queda em 15 das 27 capitais. "Vale ressaltar, porém, que a parcela da renda comprometida com dívidas se manteve estável em 30%, patamar considerável saudável, confirmando a seletividade do sistema financeiro na concessão de crédito", diz a Fecomercio.
O novo governo do presidente Lula (PT) falou sobre o tema durante a campanha, e o Ministério da Fazenda promete um programa a ser batizado de "Desenrola Brasil", para ajudar famílias a negociarem dívidas. Um dos grupos prioritários devem ser as famílias que pegaram crédito consignado via Auxílio Brasil no ano passado. Os detalhes ainda não foram divulgados.
Carvalho, da FecomercioSP, avalia que, no Brasil, o próprio custo dos empréstimos é um fator que faz a inadimplência aumentar, mas que os números de contas em atraso ainda não estão fora do controle, em sua opinião, uma vez que o crédito foi ampliado.
"Com juros de 40% ao ano, leva-se a um ciclo vicioso: cobra-se muito, os bancos aumentam taxa de risco, e aí você tem aumento da inadimplência e aumento dos juros que precisam ser cobrados. O custo do nosso dinheiro é muito elevado, é um ciclo que temos notado há décadas", diz. "Mas, eu diria que ainda é uma inadimplência pequena face a esse custo que se cobra no mercado e ao aumento que se viu na oferta de crédito."