Amaury Rezende: "O Refis é só mais um aspecto de todo um modelo de tributação errado" (Arquivo Pessoal/Divulgação)
Carolina Riveira
Publicado em 2 de outubro de 2017 às 18h25.
Última atualização em 2 de outubro de 2017 às 18h25.
Uma das principais pautas da semana no Congresso será a discussão do novo Refis, programa de refinanciamento das dívidas tributárias de pessoas físicas e jurídicas com a União. O texto-base da Medida Provisória que institui o programa já foi aprovado na Câmara na última semana, mas falta votar 18 destaques e ainda enviar o texto para aprovação do Senado. Um dos pontos mais polêmicos é a permissão para renegociação de dívidas com órgãos de controle, como a Procuradoria-Geral da República, o que permitiria a empresas investigadas na Lava-Jato obterem descontos e melhores condições de parcelamento de suas multas. Assim, o governo se encontra num impasse, já que não pode derrubar esse artigo sem derrubar o texto inteiro – o prazo final para votação é dia 11 de outubro.
Além do benefício às empresas multadas por corrupção, o texto aprovado na Câmara também é criticado por ser ainda mais flexível aos devedores do que a proposta que havia sido enviada pelo governo – que aposta no Refis para fechar as contas. A expectativa inicial do governo era arrecadar 13,3 bilhões de reais com o programa, mas as mudanças do Congresso fizeram o valor baixar para 8,8 bilhões.
Para o professor Amaury José Rezende, do núcleo de estudos em controladoria e contabilidade tributária da FEA/USP de Ribeirão Preto, o Refis beneficia as grandes empresas, que têm assistência jurídica para protelar o pagamento de suas dívidas. O resultado, na visão do professor, é que as pequenas empresas, responsáveis pela inovação nos mercados e pela geração de empregos, saem prejudicadas na concorrência. Amaury foi responsável por um estudo que analisou os balanços de 114 companhias de capital aberto entre 2008 e 2015, e mostra que, para as grandes empresas, vale mais a pena não pagar os tributos e esperar por refinanciamentos e multas do que efetivamente pagá-los em dia.
Quais os problemas da proposta do novo Refis?
O Estado não tem dinheiro, mas arrecada só 25% do que deveria arrecadar com tributação. O resto se perde. E não é só por causa da crise: nos últimos 15 anos, tivemos 25 Refis, a cada três anos tem um novo. O Refis premia a sonegação. Vamos supor que eu devo 100 reais em tributo, fico usando e não pago: se o meu concorrente também deve 100 reais, mas faz um empréstimo no banco com juros para quitar os tributos que deve, ele sai perdendo. Nosso estudo mostra que é mais barato esperar e negociar a dívida do que pagá-la. Como está hoje, o Refis inclui desconto para a dívida e para os juros. Refis não deveria dar perdão de juros e multa; deveria somente dar parcelamento. E o custo da dívida do Refis tem de ser igual à taxa de juros do mercado. Se eu pego dinheiro do banco a 8%, a taxa de renegociação do Refis tem de ser 8%. Também está havendo um duplo parcelamento das dívidas: quem já havia aderido em Refis anteriores pode voltar e renegociar o que já havia sido renegociado. Isso é um absurdo.
Mas num cenário em que o governo precisa fechar as contas, não seria melhor receber alguma coisa do que nada?
Arrecadamos mais de 1 trilhão de reais em impostos, mas a sonegação chega a 3 trilhões. Tem no mínimo dois PIBs não recolhidos em tributos. São cerca de 600 empresas no mercado de capitais, com 900 bilhões de reais não pagos em litígios. Aí vamos falar em ajuste fiscal? Temos um sistema tributário que penaliza quem paga e penaliza os pobres. E o bom pagador, como fica? Quem paga em dia não tem benefício fiscal algum. Os tributos têm de ser pagos. Tributo é um custo mínimo de se viver em sociedade; é a taxa de condomínio que paga para se ter segurança, piscina limpa. Porque moramos em conjunto. O Refis não é um problema isolado. É só mais um aspecto de todo um modelo de tributação errado.
Por outro lado, o Refis pode ser uma saída para pequenos negócios que precisam renegociar suas dívidas. E essas pequenas empresas são importantes na geração de empregos e no crescimento da economia.
Por enquanto, empresas do Simples ainda não podem aderir. Temos cerca de 5,5 milhões de empresas no Brasil, 151.000 de grande porte, 1 milhão de médio porte e 4,5 milhões no Simples [regime fiscal para empresas que faturam até 3,6 milhões de reais] e no MEI [micro-empreendedor individual, que fatura até 60.000 por ano]. Então são 4,5 milhões de empresas fora dos benefícios do Refis. Se vamos ter Refis, tem que ser para todos. A injustiça acontece porque o Refis não é dado para todos. Favorece grupos econômicos que fazem lobby muito forte. A Receita Federal tem um estudo que mostra que há 2.000 empresas no Brasil que vivem do Refis, ou seja, que participam de todos os Refis que já tivemos. No fundo ela já sabe que vai poder negociar, e não paga para ficar esperando pelo Refis. Essas não são pequenas empresas. Elas têm tem boa assistência jurídica, quando não têm como provar que são inocentes, protelam judicialmente – um processo tributário pode demorar 18 anos para ser julgado. Nos Estados Unidos, se não paga imposto, vai para a cadeia, mas aqui, ninguém é punido por não pagar. Mas a pequena empresa não tem esse poder de fogo. Isso é uma vergonha do ponto de vista da sociedade e da isonomia.
Como o sistema tributário poderia ser mais justo com as pequenas empresas?
Dizemos que as empresas e as pessoas físicas pagam muito imposto no Brasil, mas isso não é verdade para todo mundo. O custo da pequena empresa é muito maior: elas não têm margem de larga escala para competir no varejo, não têm como abrir capital e não têm dinheiro do BNDES porque não têm garantia, e 60% do dinheiro do BNDES vai para grandes empresas. A grande empresa tem benefício fiscal, dinheiro do BNDES, abre capital. E o custo tributário é menor porque elas ainda não pagam. As pequenas empresas respondem por mais de 60% dos empregos, mas são sempre desfavorecidas. O modelo tributário brasileiro não estimula a inovação, porque continua favorecendo as grandes empresas, que têm poder de lobby. Por exemplo, a Colorado [marca de cerveja] aqui de Ribeirão Preto, foi comprada pela Ambev, mas antes disso, teve que arcar com tributação pesada e não pôde entrar no Simples. Porque as grandes do setor de cerveja não queriam que ela competisse. Mas o país precisa das pequenas empresas para inovar e crescer.
O senhor disse que o nosso sistema tributário penaliza não só as pequenas empresas, como também as pessoas mais pobres. Por quê? Quais os problemas do nosso modelo de tributação?
Tem algumas premissas importantes para entender a tributação no Brasil. Primeiro, que o tributo é, em sua maior parte, sobre o consumo. Chamamos de tributação “oculta” porque o contribuinte está pagando tributos no refrigerante, no transporte, no telefone, mas não sabe quanto está pagando. Nós temos a maior tributação de consumo do mundo, que é mais de 20%. A média mundial é 12%.
Porque é injusto a tributação ser majoritariamente sobre o consumo?
Países com sistemas tributários mais justos tributam renda e propriedade. No Brasil, a herança é tributada, em média, 3,8%. Nos EUA, a média é 40%, e no Reino Unido, 20%. Mas por que escolhemos tributar consumo? Porque é um jeito de pobre pagar tributo, tributando coisas que todo mundo usa. Já a propriedade está concentrada, e não é tributada. A lancha do Neymar não é tributada porque não é considerada veículo, mas o carro que as pessoas usam todo dia, é pago. Só 3% da população paga imposto de renda, porque as pessoas são pobres. Mas os pobres pagam outros tributos que comprometem sua renda. Eu não sou contra a empresa fazer um planejamento tributário, encontrar possibilidade de pagar menos dentro do que a lei permite. Mas precisamos de uma tributação justa.