Armas de fogo: um tema em debate intenso no Brasil (Fabio Teixeira/Getty Images)
João Pedro Caleiro
Publicado em 19 de janeiro de 2019 às 08h00.
Última atualização em 19 de janeiro de 2019 às 08h00.
Antes mesmo de o novo decreto que facilita a posse de armas de fogo no Brasil ser assinado pelo presidente Jair Bolsonaro esta semana, a venda de armas já estava crescendo em todo o país.
É o que revelam dados compilados pela Pública por meio da Lei de Acesso à Informação em pedidos a órgãos como Exército e Polícia Federal (PF). Mesmo assim, dizem especialistas e lojistas, as vendas devem aumentar bastante este ano.
A quantidade de registros concedidos para lojas de venda de armas de fogo deu um salto nos últimos 15 anos: em 2018 foram abertas 206 novas lojas, maior quantidade desde o início da série histórica, em 2003. A corrida para abertura de lojas acelerou a partir de 2015, segundo os dados cedidos pelo Exército, responsável por aprovar os novos estabelecimentos.
Segundo a PF, no final de 2018 havia 677.397 registros ativos para posse de arma no Brasil, entre aqueles concedidos para pessoas físicas, seguranças que trabalham no setor privado e funcionários de órgãos públicos ou de lojas de armas. Além desses registros, existe ainda o armamento usado pelas Forças Armadas, polícias e bombeiros militares, cuja quantidade não é divulgada por questões estratégicas. Apenas os registros para pessoas físicas, ou seja, para cidadãos comuns cujas profissões não garantem o acesso facilitado à posse, já somavam mais de 340 mil até o final de 2018.
Além dos registros feitos na PF, há ainda concessões de posse especiais para colecionadores, atiradores e caçadores (CAC). Os registros do tipo CAC cresceram 422% entre 2015 e 2017. Ao todo, 290.711 armas do tipo estavam registradas no Exército até 2017.
Região Sul concentra lojas de armas e posse de pessoa física
Os números elevados de registros na PF e no Exército são puxados pela Região Sul, especialmente pelo Rio Grande do Sul, estado que tem a maior concentração de lojas de armas e de registros de arma de fogo para pessoa física em todo o país. Nos três estados da Região Sul estão 37% das lojas e 35% das posses para pessoa física, apesar de a área concentrar apenas 14% da população nacional, segundo o IBGE. Lojistas da região já sentem aumento na procura por armas de fogo desde o anúncio do decreto e esperam aumentar as vendas nos próximos meses.
Entre 2003 e 2018, o Comando do Exército concedeu registro a 1.206 lojas de venda de armas em todo o país. As concessões são distribuídas por Região Militar e não por unidade da Federação. Assim, não é possível verificar quantas lojas estão presentes em cada estado porque algumas regiões militares englobam dois, três ou até quatro estados. São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul são os únicos que possuem dados estaduais.
Mesmo contando apenas com o Rio Grande do Sul, a 3ª Região Militar é, disparada, a que tem mais lojas de armas legalizadas pelo Exército: foram 266 registros concedidos entre 2003 e 2018. Desde 2007 há uma tendência de aumento no número de lojas novas em todas as regiões:
Em termos de registros de armas garantidos para pessoa física pela PF, a região também fica à frente do resto do país. Há pelo menos 122.831 armas legalizadas na Região Sul apenas nas mãos de cidadãos comuns. Somente no Rio Grande do Sul são 55.452 registros desse tipo válidos em 2018, número que supera o de estados muito mais populosos, como São Paulo e Rio de Janeiro.
Já o número de registros concedidos pela PF em todas as categorias e que estavam válidos no final de 2018 era maior em São Paulo do que no Rio Grande do Sul. Isso inclui autorizações de posse de armas concedidas para funcionários de segurança privada, além de concessões para funcionários da segurança pública ou órgãos públicos.
O pesquisador Rodrigo Azevedo, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor da PUC do Rio Grande do Sul, explica que a grande concentração de lojas de armas no Sul decorre de uma tradição cultural da região. “As elites locais, ligadas ao latifúndio, vivem em um meio onde a arma de fogo sempre foi valorizada e que acessa a arma por meios legais”, explica Azevedo.
“Uma análise histórica mostra que os enfrentamentos políticos que tivemos no Rio Grande do Sul, desde a Revolução Farroupilha, colocavam os proprietários de terra em um papel não apenas de elite econômica, mas também de controle da segurança e das fronteiras. Nesse contexto, as armas adquirem importância maior do que em outras regiões.” Ele destaca que a análise desses dados se baseia apenas no mercado legal – os resultados seriam diferentes se contassem as armas ilegais.
Lojistas esperam mais vendas no Sul
Proprietário da loja Parceria Armas em Alegrete, cidade de cerca de 80 mil habitantes no Rio Grande do Sul, Lucas Nunes avalia como positivo o decreto assinado por Bolsonaro.
“Ao longo dessa semana já teve um crescimento em relação à procura. Mas é muita especulação ainda, muitos clientes perguntando o que mudou, querendo saber se já podem andar armados”, conta. Porém, ele critica o fato de armas de uso exclusivo – aquelas usadas pelo Exército e forças especiais, como fuzis – não terem sido liberadas.
Romeu Soares, gerente de uma loja de artigos esportivos e armas de fogo em Ijuí, cidade de 83 mil habitantes no noroeste do Rio Grande do Sul, explica que seus clientes são principalmente agricultores que querem ter arma na sua propriedade. “No geral eles já chegam pedindo uma arma específica, não procuram a mais barata ou a mais cara, querem um calibre ou modelo determinado.”
Ele percebeu que a partir da metade de 2018 as vendas de armas de fogo começaram a cair porque seus clientes já estavam com expectativa de mudanças na legislação. “Eles diziam que preferiam aguardar. Estavam esperando diminuir a burocracia”, lembra. O comerciante acredita que a tendência deve mudar nos próximos meses. “Agora, nos últimos dias, o pessoal quer saber o que está mudando, se diminuíram os impostos, se diminuiu o custo do registro.”
Especialistas concordam que as vendas vão aumentar. “Certamente haverá uma maior demanda por armas compradas pelas vias legais, com registro de defesa pessoal na Polícia Federal”, atesta Rodrigo Azevedo, da PUC-RS.
Natália Pollachi, do Instituto Sou da Paz, lembra que, como o decreto permite que as armas sejam guardadas em comércios ou indústrias, é possível que haja maior difusão de armas de fogo no meio urbano, inclusive em bairros onde a criminalidade é baixa.
Isso é uma grande preocupação porque, explica Rodrigo Azevedo, a circulação de armas no mercado legal também alimenta o mercado ilegal. “Hoje nós já temos uma situação onde as armas do próprio Estado acabam parando na mão de criminosos por conta da corrupção. Quando se tem um maior acesso a compra de armas legais e quando a fiscalização é vista como um excesso, essa situação tende a se agravar.”
Pesquisa do Instituto Sou da Paz feita em parceria com o Ministério Público do Estado de São Paulo em 2015 constatou que 38% das armas apreendidas na capital paulista foram vendidas legalmente e depois desviadas. Natália Pollachi, uma das pesquisadoras autoras do estudo, explica que a tendência se repete em outras regiões e aponta para uma conexão fluida e rápida entre os mercados legal e ilegal de armas.
“O dois mercados são intimamente interligados. As armas que hoje são usadas no crime são em sua maioria de fabricação nacional, não contrabandeadas de outros países, e foram furtadas, roubadas ou desviadas do mercado legal”, afirma.
Publicado em 2013 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o Mapa das Armas de Fogo nas Microrregiões Brasileiras mostra que as 20 microrregiões com maior prevalência de armas de fogo têm uma taxa de homicídios, em média, 7,4 vezes mais alta que as 20 em que a presença de armamentos é mais baixa.
Para calcularem as microrregiões com maior concentração de armas, os pesquisadores levam em consideração não apenas os armamentos legalizados, registradas na PF, mas também as armas em posse de forças de segurança, como polícias locais, e também uma estimativa da quantidade de armas ilegais existentes em cada área.
O estudo também conclui que o aumento no número de armas legais acarreta aumento na quantidade de ilegais. “A maior disponibilidade de armas legais em uma localidade faz aumentar a probabilidade de estas armas serem roubadas e extraviadas, levando-as à ilegalidade”, atesta Rodrigo Azevedo.
O que muda com a nova legislação
A principal mudança do novo decreto é alterar os critérios necessários para caracterizar a “efetiva necessidade” da posse. Antes, era necessário apresentar à Polícia Federal uma justificativa por escrito na qual o requerente explicitava a necessidade. O julgamento do pedido ficava a cargo do delegado responsável e era feito de forma subjetiva. Agora, os requerentes podem solicitar a posse de armas à PF sem apresentar justificativas para o pedido, pois o decreto já considera presente a efetiva necessidade para toda a população.
Na prática, ao incluir moradores da área rural de todas as localidades e moradores da área urbana dos estados com índices de violência acima do determinado pelo decreto, a nova legislação estabelece que todas as pessoas do país se enquadram nos requisitos de efetiva necessidade para obter uma arma de fogo.
Poderão comprar armas de forma legal os brasileiros que moram em áreas urbanas localizadas em Unidades Federativas com taxa de homicídios superior a 10 por 100 mil habitantes em 2016 – segundo o Atlas da Violência 2018, citado no texto da lei como fonte para os dados, todos os estados da Federação e o Distrito Federal atingem esse critério.
O que passa a ser analisado pela PF em cada pedido são outros critérios previamente estabelecidos pelo Estatuto do Desarmamento: ser maior de 25 anos, ter ocupação lícita e residência comprovada, não ter antecedentes criminais e comprovar a capacidade técnica e psicológica para o uso do equipamento por meio de teste de tiro e avaliação psicológica. O decreto determina também que não serão aceitos pedidos em que haja “vínculo com grupos criminosos”.