Otaviano Canuto, diretor-executivo para o Brasil no FMI: rebaixamento não significa "que pulamos em algum precipício" (Agência Brasil)
João Pedro Caleiro
Publicado em 11 de setembro de 2015 às 14h59.
São Paulo - Para Otaviano Canuto, o rebaixamento da nota do Brasil pela Standard & Poor's não significa que "tenhamos pulado em algum precipício".
A perda do grau de investimento pode servir inclusive como catalisadora em um momento no qual as instituições brasileiras estão sendo testadas: "não dá para esperar, não dá para fingir que não está acontecendo".
Canuto já foi secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda, professor da Unicamp e vice-presidente e assessor sênior para economias emergentes do Banco Mundial, onde ficou mais de 10 anos.
Seu nome chegou a ser cotado para a Fazenda pós-Mantega, assim como para a presidência do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).
Desde maio, ele é diretor-executivo para o Brasil no FMI (Fundo Monetário Internacional).
No Brasil para participar de um Congresso de Economia, Canuto conversou com EXAME.com nesta quinta-feira sobre o impasse fiscal, política comercial e o risco de perda das conquistas sociais. Veja a entrevista:
EXAME.com – Quais são as consequências da perda do grau de investimento para o país?
Otaviano Canuto – É perda por uma agência: não é automático que as outras duas sigam. A Moody’s soltou nota confirmando seu patamar. Mas tem um efeito no conjunto de riscos a serem considerados por investidores em qualquer área, assim como um efeito secundário que é uma piora para todas as empresas brasileiras cujo rating depende do soberano. Isso já aconteceu com a Petrobras.
É bom explicar do que estamos falando: rating soberano. Não há nenhuma avaliação do país, se é bom ou melhor; é uma leitura da probabilidade de um evento com os títulos da dívida.
Agora, é fundamental que não haja um segundo rebaixamento, porque alguns tipos de investidores institucionais são obrigados a reter em carteira apenas papeis que tenham grau de investimento por pelo menos duas grandes agências.
Entre agora e o momento de revisão pelas outras agências, muita coisa pode acontecer. O rebaixamento pode servir como catalisador, deixando para trás definitivamente dúvidas quanto ao compromisso do governo de conseguir um superávit primário positivo em 2016 ao invés do déficit que estava projetado. E também empurrar algumas lideranças do Congresso e do próprio governo a cooperar e fazer o que deve ser feito para melhorar o cenário fiscal.
Não há nada automático: não é uma boa notícia, mas também não quer dizer que tenhamos pulado em algum precipício.
EXAME.com – O fiscal é hoje o centro da preocupação, mas a despesa é muito engessada e os ajustes historicamente foram feitos mais pelo lado da receita. Como destravar isso?
Canuto – Aí tem que ser realista. Por vários fatores, e isso vem desde a era FHC, há uma propensão do gasto público se mover automaticamente para cima ano após ano, independente daquilo que o governo quisesse fazer.
O ajuste fiscal pra valer, que sinaliza uma mudança permanente e duradoura, vai exigir abrir essas caixinhas e mudar essa tendência. Mas qualquer pessoa que tenha tentado sabe que você não faz da noite pro dia: envolve Congresso, mudar leis e brigar com grupos de interesse que se agarram a benefícios fiscais e lutam para não perder.
Tem dois momentos. Um é a travessia, e se pode falar em medidas temporárias que vão em parte ser de aumento da arrecadação tributária, mas sabendo que no frigir dos ovos a ponte tem que ser para uma agenda que revisite o que você descreveu.
A desaceleração do PIB é maior do que qualquer analista esperava, o que impacta a arrecadação. A necessidade premente do Orçamento de 2016 não permite esperar que outros fatores se desvaneçam. Precisamos do curto prazo para chegar no longo, e há uma aglomeração de interesses para tornar isso mais factível. Paradoxalmente, do ponto de vista fiscal estou mais otimista hoje do que estava antes do rebaixamento.
EXAME.com – Por que?
Canuto – Por causa do choque de realidade. Não dá para esperar, não dá para fingir que não está acontecendo.
EXAME.com – Com a previsão de dois anos de recessão, o Brasil já corre o risco de perder parte das conquistas sociais dos últimos anos?
Canuto – Não uma reversão total, porque uma parte substancial da redução da pobreza tem raízes sólidas. Tem lá o papel importante das políticas sociais, que melhoraram muito em termos de relação custo-resultado e eficácia no Brasil, algo que vem desde FHC.
Outro componente importante tem sido a pura e simples melhora no acesso à educação, mesmo sem falar em qualidade. Você vê que o nível de escolaridade dos estratos mais jovens é mais alto do que dos mais velhos, e isso já está fazendo uma diferença.
Tem também a ver com os ganhos macroeconômicos de estabilidade que o pais auferiu e pode muito bem recuperar. Uma boa parcela da redução da pobreza e melhora na distribuição de renda, ainda que longe de qualquer ótimo, não é facilmente reversível. A conjuntura não favorece a continuação de ganhos, o mercado de trabalho não será tão favorável ao trabalhador como foi, mas isso não significa que estamos retrocedendo 20 anos.
EXAME.com – Mas para viver um novo ciclo de crescimento, terá que ser bem diferente.
Canuto – Isso. Não temos mais aquela alta das commodities em que o país crescia mais sem precisar fazer nada, por mera gravidade. Também não teremos mais um ciclo de aumento na margem de endividamento das famílias, que permitiu um boom de consumo por um tempo. A mudança permanece sólida, mas em contribuição macro deu o que tinha que dar.
Há que se mover em direção a um novo padrão de crescimento, que tenha um peso maior do investimento como proporção do PIB. Aí a grande lição dos últimos anos é que não vamos conseguir fazer isso com oferta de mercado protegido e de crédito subsidiado.
Sem segurança nas regras do jogo e em relação a gestão macroeconômica, os investidores permanecem retraídos e não embarcam em programas de alavancagem patrimonial. Um novo padrão tem que voltar a cuidar muito bem da estabilidade macro e principalmente da melhora do ambiente de negócios, que no plano micro continua ruim.
Essa ruindade pôde ser ignorada por conta do bom dinamismo de outras áreas, mas agora que a maré desceu, exige ver como reduzir os custos que são enormes: as rigidezes, dificuldades e riscos nas transações entre empresas, ou entre empresas e trabalhadores, ou entre empresas e governos. Essa agenda micro dá trabalho.
EXAME.com – Mas o que pode florescer nesse novo modelo de desenvolvimento?
Canuto – Investimento em infraestrutura é um caminho óbvio, porque nós temos uma defasagem brutal. Se conseguir juntar os setores público e privado com divisão de trabalho apropriada e sintonia fina, o patamar sobe e diminui inúmeros desperdícios, o que automaticamente aumenta a produtividade total. Não é só pela demanda, é pela oferta.
Também haveria ganhos potenciais de produtividade com a revisão da nossa abordagem de comércio exterior. O Brasil ainda usa com muita frequência instrumentos de política comercial superados em boa parte do mundo: tarifas, regras de conteúdo local muito abrangentes, etc. Isso desconecta o país de cadeias de valor. Uma maior abertura seria uma fonte potencial enorme de aumento de produtividade e crescimento no futuro.
EXAME.com – Tem esse diagnóstico de que nossa aposta multilateral ficou para trás, mas como fazer uma abertura? A parte de tarifas ainda está amarrada pelo Mercosul.
Canuto – O ideal é se fazer através de acordos, mas a realidade evoluiu e coisas que eram viáveis e possíveis no início do novo milênio já não são. Tem que ser um pouco mais pragmático e proativo com Europa e EUA.
O ponto é que o grau de fechamento da economia brasileira é hoje prejudicial à produtividade do que se faz aqui dentro.
EXAME.com – Até que ponto a incerteza sobre a China afeta essa situação?
Canuto – Isso está precificado e o impacto é via preços de commodities. A mudança no patamar de crescimento chinês era algo esperado, por eles e por qualquer um que tenha acompanhado o país nos últimos anos. A percepção de que havia uma necessidade de encaminhar o pais para um novo padrão era razoavelmente ampla aqui e lá fora.
Mas existe uma diferença entre percepção e disposição a ajudar na mudança. Eu quero crer que as turbulências deste ano vão, assim como em outras experiências da história brasileira recente, criar um caldo de cultura favorável ao novo momento.
EXAME.com – Da mesma forma que houve uma euforia exagerada, há hoje um pessimismo exagerado com o Brasil?
Canuto – Creio que sim. Nós estamos testando essa capacidade de resposta das instituições do pais. Em outros momentos críticos recentes da história, a boa notícia é que houve resposta: reagimos e fizemos mudanças institucionais importantes como a Lei de Responsabilidade Fiscal, a renegociação das dívidas dos estados e municípios. Assim como lentamente, chegamos a estabilidade macro.
Agora, é preciso que isso se mostre através de atos. Nós estamos nesse exato momento mostrando se estamos no nível da tarefa. Com algo claro nessa direção, esse clima negativo melhora rapidamente.