Economia

Plano Real, 30 anos: Armínio Fraga, o tripé macroeconômico e os desafios de manter o plano vivo

Ex-presidente do Banco Central detalha os percalços enfrentados para estabilizar a nova moeda nos anos 1990 e o cenário para o desenvolvimento da economia brasileira

Luciano Pádua
Luciano Pádua

Editor de Macroeconomia

Publicado em 1 de agosto de 2024 às 08h36.

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O economista Armínio Fraga tem sido um observador privilegiado da economia brasileira nos últimos 30 anos. Atualmente chairman da Gávea Investimentos, Fraga já atuou no setor público por muitos anos, especialmente de 1999 a 2003, quando foi presidente do Banco Central. Ele viveu na pele os desafios de manter o Real forte e vivo após os primeiros anos da moeda. E desde o primeiro momento foi claro sobre a prioridade:

"Eu topo, mas vocês precisam me dizer que o lado fiscal vai andar, senão vou me entregar a uma tarefa inviável", conta, relembrando o convite feito pelo então ministro da Fazenda, Pedro Malan. Ele conversou longamente com a EXAME como parte da série especial de 30 anos do Plano Real (Veja a íntegra acima).

Coube a Fraga capitanear o chamado tripé macroeconômico, que em linhas gerais consiste em controle da inflação, câmbio flutuante e equilíbrio fiscal. E ele assumiu a instituição em um momento bastante delicado para a moeda. Em janeiro de 1999, o real sofreu uma forte desvalorização frente ao dólar — numa época em que a paridade com a moeda americana era parte da fortaleza da nova moeda brasileira. 

"O convite surgiu no meio daquela confusão toda que teve como fator mais visível uma crise cambial, que acabou forçando a depreciação do real. Não foi uma política de depreciação, foi uma depreciação imposta pela inviabilidade daquela taxa de câmbio", diz Fraga. "Sabia-se de uma inflação residual que sempre fica. Não foi tão grande no caso do Real, mas houve. E ali, o que nós tivemos foi um caso "livro texto", porque o Brasil tinha uma situação fiscal insustentável."

Ele relembra que no começo do plano, em 1994, a situação fiscal foi saneada momentaneamente.

"Mas rapidamente ficou claro que, sem a inflação, ficava difícil fechar as contas", afirma. "O Brasil veio carregando uma situação fiscal bastante precária, sobretudo porque a taxa de juros era bastante alta. Quando de fato a moeda acabou estourando a taxa de câmbio, os juros aqui estavam em torno de 20%, a inflação estava em 2%. Então aquilo não ia aguentar, estava muito claro. Fazia falta uma situação fiscal mais sustentável, inclusive porque uma dívida que está crescendo com essa taxa em pouco tempo estoura."

No período de 1997 a 1999, o governo de Fernando Henrique Cardoso tentou fazer diversos ajustes fiscais. O efeito do Real vinha se diluindo na economia e, com a crise de 99, muitos aliados políticos pensavam em "abandonar" o ex-presidente.

"Mas felizmente foi possível introduzir um sistema de câmbio flutuante, que foi uma grande novidade que o Brasil na verdade nunca tinha testado e exigiu como apoios o ajuste fiscal de um lado e, do outro, o sistema de metas para inflação. A ideia de ter uma meta monetária já não existia em nenhum lugar do mundo", afirma Fraga.

Organizando as expectativas

Em 2000, foi aprovada a Lei de Responsabilidade Fiscal, o arcabouço regulatório que norteia as contas públicas. E Fraga acreditava no último eixo de seu tripé: um sistema de metas para a inflação.

"Naquele momento, um sistema de metas para inflação tinha uma boa chance de dar certo porque as pré-condições estavam ali", diz. "A lógica tem uma sequência natural. Primeiro, não havia hipótese de ter um sistema qualquer que fosse de câmbio fixo ou de câmbio administrado ou flutuante como acabou acontecendo, sem uma situação fiscal arrumada. Não havia chance. Esse foi o primeiro passo, foi anunciado pelo presidente e as medidas começaram a surgir."

No entanto, pondera, isso não foi o suficiente porque o par — câmbio defasado e juros altos — "claramente não era sustentável".

"Vamos tentar voltar para algum sistema onde a taxa de câmbio tem um papel preponderante ou vamos deixar o câmbio flutuar? Já era um consenso global que um sistema de metas monetárias, que se vê muito no livro no curso de introdução à economia, não era viável",afirma.

"Na prática, a demanda por moeda é muito volátil, e é um instrumento que tem pouca aderência no horizonte de tempo relevante. Mesmo num horizonte de tempo mais longo, com tanta inovação financeira, também não parecia ser uma meta viável para nós."

“O Plano Real foi o que realmente colocou em movimento a revolução positiva da imagem do Brasil. Mas eu esperava mais crescimento. Deu três passos para a frente e dois para trás” — Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central e fundador e chairman da Gávea Investimentos (Leandro Fonseca/Exame)

Antes de assumir o posto no BC, Armínio Fraga era sócio de George Soros em um fundo dedicado a mercados emergentes, o que lhe permitia uma visão privilegiada, em sua opinião.

"Ficou bem claro que a receita natural era o sistema de metas para inflação", diz. "Tinha sido introduzido formalmente em primeiro lugar na Nova Zelândia, depois no Reino Unido, na Suécia e no Canadá. Tinha a grande vantagem da transparência, de ser uma forma de chegar na população, que é muito difícil para alguém que não é um especialista. Não tem aqui um sistema complicado com cinco variáveis, sete metas e ninguém acreditava em nada."

Ele aponta que esse sistema serviu de "âncora" para os preços, e também como um mecanismo de redução da inflação.

"Vendo o exemplo desses países todos, acreditávamos que era possível influenciar as expectativas se o funcionamento do sistema fosse entendido pela população e pelo mercado. Quando falo mercado, não é a Faria Lima ou Wall Street, é a economia global de mercado. São os industriais, as empresas de serviços que têm que contratar gente, comprar equipamento etc. Todo mundo tem que tomar decisão do que fazer", diz. "O sistema de metas tinha essa magnífica função de organizar as expectativas."

Na medida em que esse sistema fosse ganhando credibilidade, conta, o próprio processo de reestabilização ocorreria.

"As expectativas de inflação estavam muito dispersas, num universo de visões que iam de 20% a 50%. Se a inflação para o ano de 1999 acabasse em qualquer número dentro desse intervalo, [a economia] ia reindexar. Ao contrário do que aconteceu em crises na Ásia, no próprio México também, se acontecesse no Brasil ia reindexar e ia tudo acabar", diz Fraga, em referência ao risco de reindexar a economia, que na prática criava um moto-perpétuo de inflação.

"Nesse meio tempo, várias crises aconteceram, de tudo que é tipo, interna, externa, política, de balanço de pagamentos, outra vez teve de tudo. Bem ou mal, o sistema está aí. A inflação agora, você está vendo a discussão que estamos tendo nesse momento. Estamos falando aqui no dia 2 de maio. A inflação está desancorada, está em 3,5%. Está bom, eu acho que é certo, tem que ir para três, a meta é três, mas é bem diferente de ela estar entre 20 e 50. Então, é um belíssimo legado", afirma.

Perspectivas para o Brasil

Na entrevista, Fraga também compartilhou suas preocupações com o futuro da economia brasileira, especialmente em relação à política fiscal.

"A situação está meio confusa, porque tem gente que acha que é uma espécie de capricho do Banco Central deixar os juros nesse nível quando na verdade o que está faltando é que o tripé hoje em dia é um bípede porque o fiscal está muito solto e não tem credibilidade", diz.

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Nova reforma da Previdência: Para Fraga, uma nova reforma da previdência será essencial para dar as bases de um novo crescimento no Brasil (Foto/Exame)

Para ele, ainda falta muita coisa do ponto de vista mais amplo do desenvolvimento do país.

"Não dá para o país continuar com a desigualdade que nós temos. Não dá para o Brasil continuar com a falta de oportunidade que nós temos. Eu não sou dos que demoniza o Estado, muito pelo contrário. Conheço isso razoavelmente bem, mas eu não tenho a menor dúvida que o Estado brasileiro também tem espaço para se aprimorar em várias frentes, tanto no que diz respeito ao uso de tecnologia e métodos de gestão, até propriamente na definição das suas prioridades", afirma.

Para o economista, o Brasil precisará gastar mais em saúde, porque o país vai envelhecer e porque as pessoas ampliarão a renda, o que tende a fazer com que gastem mais com a saúde.

"Vai ter uma pressão grande também para que o orçamento do SUS aumente. Acho que hoje há uma conscientização da importância do SUS e de tudo que o SUS já nos ofereceu, fazendo, a meu ver, praticamente um milagre, porque o SUS trabalha com menos do que 4% do PIB para um sistema de educação universal. Esse número inclui estados e municípios. Então vai ter que ir mais dinheiro para o SUS, vai ter que ter mais dinheiro para infraestrutura", diz.

"Em algumas áreas, o setor privado não faz tudo, pode fazer mais, mas não vai conseguir fazer tudo. Nós vamos ter que cuidar da questão da segurança, que está atingindo níveis cada vez mais preocupantes, e a própria educação, eu acho que também pode, sobretudo num período de transição, demandar mais recurso."

E diante isso surge o questionamento: de onde sairão os recursos em um país que já tem déficit fiscal?

"Vai exigir repensar", afirma Armínio Fraga. "Quase 80% do gasto público vai para previdência e folha de pagamentos, tanto a federal, as folhas estaduais e municipais. Na maioria dos países de renda média, esse número é mais para 60%. Então, vamos supor que vá para 65%. 15% de nós estamos falando de 4 a 5 pontos do PIB."

Para isso, seria necessário fazer uma reforma do Estado bem feita e outra reforma da previdência, que, na visão de Fraga, vai ter que "obrigatoriamente acontecer".

"Não adianta espernear que nem uma criança de 2, 3 anos, porque isso vai ter que acontecer. Não dá para gastar 12, 13% do PIB com a previdência num país ainda relativamente jovem. Está mudando rapidamente. Então, tem um grande movimento na direção que eu venho apontando para que o país possa investir mais, investir melhor, investir na área certa para crescer, para dar chance às pessoas", afirma.

"Tem um número enorme de pessoas aqui, três quartos da população tem pouca chance, essa que é a verdade, é a tristeza. Então, uma estratégia de desenvolvimento exige um lado macro arrumadinho, a gente sabe, mas tem que ir muito além."

Plano Real, 30 anos — série documental

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Fraga foi entrevistado para a série documental "Plano Real, 30 anos", um projeto audiovisual da EXAME que ouviu alguns dos principais economistas, executivos e banqueiros do Brasil.

Entre os entrevistados estão:

  • Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central e fundador e chairman da Gávea Investimentos
  • Carlos Vieira, presidente da Caixa
  • Carolina Barros, diretora de Relacionamento, Cidadania e Supervisão de Conduta do Banco Central
  • Edmar Bacha, economista e sócio-fundador e diretor da Casa das Garças
  • Elena Landau, ex-diretora do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e ex-presidente do Conselho de Administração da Eletrobras
  • Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central e sócio-fundador da Rio Bravo
  • Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central e sócio da Tendências Consultoria
  • Henrique Meirelles, ex-presidente do Banco Central e conselheiro do Banco Master
  • Jorge Gerdau, empresário e presidente do Conselho Superior do Movimento Brasil Competitivo (MBC)
  • Luiz Carlos Trabuco Cappi, presidente do Conselho de Administração do Bradesco
  • Marcelo Noronha, CEO do Bradesco
  • Pedro Malan, ex-ministro da Fazenda
  • Pedro Parente, ex-ministro da Casa Civil e sócio da eB Capital
  • Persio Arida, ex-presidente do Banco Central e do BNDES
  • Orly Machado, fundador e presidente da C&M Software
  • Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central
  • Roberto Sallouti, CEO do BTG Pactual (do mesmo grupo de controle da EXAME)

Assista às entrevistas já publicadas:

Assista aos episódios da série Plano Real, 30 anos da EXAME

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