Fábrica da Foxconn em Shenzhen, na China (Voishmel/AFP)
João Pedro Caleiro
Publicado em 20 de julho de 2018 às 06h37.
Última atualização em 20 de julho de 2018 às 06h37.
Artigo de Jason Dedrick, professor de Estudos da Informação na Universidade Syracuse, Greg Linden, pesquisador associado da Universidade da Califórnia em Berkeley e Kenneth L. Kraemer, professor de Negócios da Universidade da Califórnia em Irvine
As tarifas da administração Trump sobre a China tiveram como alvo até agora principalmente bens industriais como motores de aeronaves e compressores de gás. Mas a administração também ameaçou aplicar tarifas em US$ 200 bilhões de outros bens se a disputa continuar.
Não foi divulgada nenhuma lista com todos os bens que podem estar sujeitos a tarifas, mas ela teria que incluir aparelhos eletrônicos, como smartphones, que são a principal categoria individual de produtos nas exportações chinesas para os EUA.
Um produto bem conhecido que poderia ser afetado é o iPhone, que é montado na China. Quando um iPhone chega nos EUA, ele é registrado como uma importação com seu custo de fábrica de cerca de US$ 240, que é então adicionado ao enorme déficit bilateral dos EUA com a China.
A importação do iPhone parece uma grande perda para os EUA, pelo menos para o presidente, que argumenta que a “China vem tirando 500 bilhões de dólares por ano do nosso país e reconstruindo a China”.
Uma estimativa sugere que a importação do iPhone 7 e do 7 Plus contribuiu em US$ 15,7 bilhões para o déficit com a China no ano passado.
Porém, como mostra nossa pesquisa sobre a estrutura de custo de um iPhone, esse número não reflete a realidade de quanto valor a China de fato tira das suas exportações de iPhone – ou dos muitos bens eletrônicos de marca que envia para os EUA e outros lugares.
Graças às cadeias de valor globais que correm através da China, os déficits comerciais nem sempre são o que parecem.
Vamos examinar o iPhone 7 um pouco mais de perto para ver quanto valor a China está de fato capturando.
Vamos começar com os componentes mais valiosos que formam um iPhone: a tela sensível ao toque, os chips de memória, os microprocessadores e por aí vai.
Eles vêm de uma mistura de companhias americanas, japonesas, coreanas e taiwanesas como Intel, Sony, Samsung e Foxconn. Quase nenhum deles é fabricado na China. A Apple compra os componentes, os embarca para a China, e eles saem de lá dentro de um iPhone.
Mas e todas aquelas famosas fábricas na China com milhões de trabalhadores fazendo iPhones? As empresas donas destas companhias, incluindo a Foxconn, são todas com sede em Taiwan.
Da estimativa de custo de fábrica de US$ 237,45 feita pelo IHS Markit quando o iPhone 7 foi lançado no final de 2016, calculamos que tudo que é ganho na China soma cerca de US$ 8,46, ou 3,6% do total. Isso inclui a bateria, fornecida por uma companhia chinesa, e o trabalho utilizado na montagem.
Os outros US$ 228,99 vão para outro lugar. Os EUA e o Japão cada um tomam um naco de cerca de US$ 68, Taiwan ganha cerca de US$ 48 e pouco menos de US$ 17 vai para a Coreia do Sul.
E estimamos que os cerca de US$ 283 de lucro líquido do preço de varejo (cerca de US$ 649 para o modelo de 32GB quando foi lançado) vai direto para os cofres da Apple.
Em resumo, a China ganha muitos empregos (mal pagos) enquanto os lucros fluem para outros países.
Uma forma melhor de pensar sobre o déficit entre EUA e China associado com o iPhone seria apenas contar o valor adicionado na China, US$ 8,50, ao invés dos US$ 240 que aparecem como importação chinesa nos EUA.
Estudiosos encontraram resultados similares para o balanço mais amplo do comércio entre EUA e China, apesar da disparidade ser menos extrema do que no caso do iPhone.
De um déficit de US$ 375 bilhões em 2017, provavelmente um terço na verdade envolve aportes que vieram de outros lugares – incluindo os EUA.
O uso da China como um chão de fábrica gigante tem sido bom para a economia americana, ainda que não para os trabalhadores fabris americanos. Ao tirar vantagem de uma cadeira de valor global vasta e altamente eficiente, a Apple pode trazer novos produtos ao mercado em níveis comparáveis aos de seus competidores, mais notavelmente a gigante coreana Samsung.
Os consumidores se beneficiam de produtos inovadores, e milhares de companhias e indivíduos constroem negócios em torno da criação de aplicativos para vender na App Store. A Apple usa seus lucros para pagar exércitos de engenheiros de hardware e software, comerciantes, executivos, advogados e empregados da Apple Store. E a maioria destes empregos está nos EUA.
Se a próxima rodada de tarifas tornar o iPhone mais caro, a demanda vai cair. Enquanto isso a Samsung, que faz metade dos seus telefones na Coreia e no Vietnã, com uma parcela menor de partes americanas, não será tão afetada por uma tarifa sobre bens da China e poderá ganhar participação de mercado sobre a Apple, transferindo lucros e empregos de altos salários dos EUA para a Coreia do Sul.
Colocado de outra forma: as pesquisas mostram que a globalização prejudicou alguns americanos enquanto tornou a vida melhor para muitos outros. Colocar a globalização em refluxo com tarifas também criará vencedores e perdedores – e pode haver muito mais na segunda categoria.
Quando discutimos estes tópicos com formuladores de políticas e a mídia, frequentemente nos perguntam: “Por que a Apple não pode simplesmente fazer iPhones nos EUA”?
O problema principal é que a face manufatureira da indústria de eletrônicos global se mudou para a Ásia nos anos 80 e 90. Empresas como a Apple precisam lidar com essa realidade.
E os números que citamos deixam claro que não há muito valor a ser ganho pela economia ou pelos seus trabalhadores em simplesmente montar iPhones aqui de componentes feitos na Ásia.
Apesar de ser possível fazer isso, levaria pelo menos alguns anos para estabelecer, custaria mais caro por unidade do que produzir na Ásia, e exigiria muitos castigos e incentivos dos formuladores de políticas para conseguir que as várias empresas envolvidas o façam – por exemplo, os potenciais US$ 3 bilhões em subsídios que Wisconsin deu para a Foxconn para construir uma fábrica de LCD lá.
Há, é claro, muito para os EUA reclamarem no que se refere à indústria e políticas de alta tecnologia na China, seja pela falta de proteção para a propriedade intelectual ou barreiras não-tarifárias que mantém grandes companhias de tecnologia como Google e Facebook fora do mercado chinês.
Há espaço para barganhas mais duras e sofisticadas ao abordar estes temas.
Mas no que se refere ao comércio, as políticas devem refletir que a manufatura é agora uma rede global. A OMC já desenvolveu um conjunto alternativo de números de comércio que mostra as trocas de cada país em termos de valor adicionado, mas a administração parece que não recebeu o comunicado.
A guerra comercial de Trump está baseada em uma ideia simplista da balança comercial. Expandir tarifas sobre mais e mais bens pesará sobre os negócios, trabalhadores e consumidores americanos. E não há garantia que o resultado final será positivo quando a disputa acabar.
Esta é uma guerra que nunca deveria ter sido iniciada.
Publicado originalmente no site The Conversation e traduzido por João Pedro Caleiro com permissão dos autores