ELEIÇÕES AMERICANAS: disputa entre a democrata Hillary Clinton e o republicano Donald Trump fica mais acirrada na reta final / VEJA.com/Getty Images
Da Redação
Publicado em 2 de julho de 2016 às 07h20.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h11.
The Power Paradox: How we Gain and Lose Influence
Autor: Dacher Keltner. Editora: Penguin Press. 208 páginas
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No século 16, Maquiavel tirou o véu dos olhos do Ocidente e revelou a real natureza – e as reais exigências – do poder. Obter e manter poder político não tinha, ao contrário do que pregavam as obras de seu tempo, nada a ver com virtude, com praticar o bem, com seguir a religião, com obedecer a consciência. Tampouco era um presente gratuito da graça de Deus. O poder pertencia àqueles dispostos a mentir, a dissimular e a matar para passar na frente dos demais. Maquiavel não estava interessado em exortar seus leitores a um tipo de conduta e nem propondo um novo tipo de política, mais inescrupuloso, em oposição a um passado mais moralista; não falava de como o mundo deveria ser. Ele descrevia, de maneira ineditamente aberta, a realidade sobre o jogo de poder que se esconde atrás da capa do moralismo. Se o indivíduo tiver interesse no poder, esse é o caminho que ele precisa seguir.
Depois de 500 anos, algo mudou? Segundo Dacher Keltner, autor de The Power Paradox (“O Paradoxo do Poder”, numa tradução livre), muita coisa. Nossa sociedade não tolera mais as práticas do passado. Abolimos a escravidão e a servidão, demos direitos iguais às mulheres e a todas as raças, temos preocupação social, não aceitamos a morte de inocentes. Hoje em dia, o receituário de Maquiavel não funciona mais. O caminho para se chegar ao poder – que Keltner define como a capacidade de influenciar outras pessoas – não passa mais pela violência e pela conversão. Agora, para galgar posições duradouras de influência, é preciso… fazer o bem, servir ao próximo.
O poder nos dias de hoje não pode mais ser agarrado à força, contrariando os desejos da sociedade. Ele é necessariamente dado pelos outros membros da comunidade, de forma voluntária, e eles agraciam com mais estima e respeito justamente aqueles que melhor servem ao grupo.
Keltner equaciona a capacidade de influenciar os outros nos dias de hoje com estar dotado de um sentido de missão, ser movido por uma força maior que nos impele ao bem (“que os polinésios chamam de mana…”, escreve ele), colocar nosso foco no interesse alheio. Maquiavel torceria o nariz; essa visão é curiosamente próxima do tipo de idealismo ingênuo (e hipócrita, pois ocultador da relações verdadeiras) que o florentino desmistificou.
Seja como for, aceitemos por um momento esse diagnóstico e vamos ao cerne do livro. Para se chegar ao poder, é preciso pensar nos outros. Mas, uma vez possuidor de poder, o indivíduo começa a mudar e se torna cada vez menos altruísta, menos capaz de se colocar no lugar do outro, mais manipulador, menos respeitoso, com uma crença exagerada em si mesmo e, no limite, sociopático. O velho adágio de que o poder corrompe é aqui confirmado por uma série de experimentos. Pessoas poderosas têm mais propensão a mentir, são menos empáticos (se desenham um “E” na própria testa, têm mais chance de desenhá-lo invertido para quem olha) e mesmo a furtar em lojas – um resultado particularmente inesperado e que deveria ser mais explorado. O resultado prático é que o poder leva, com muita facilidade, ao abuso de poder.
O poder pode ser abusado, mas é também uma força para o bem, capaz de ocasionar mudanças importantes na sociedade. Contudo, a posse do poder tem um efeito deletério na psicologia do indivíduo, que exige, presumivelmente, um exercício consciente de altruísmo e empatia para ser contrabalanceado.
O grande ponto forte do livro está nos muitos experimentos psicológicos que Keltner relata. Por outro lado, alguns dos princípios do poder (20 ao todo) que ele propõe são ilustrados com anedotas, o que os deixa consideravelmente mais fracos. Em alguns momentos, parece que boas intenções – e mais, a confusão entre querer o bem e descrever a realidade – falam alto demais. Sua narrativa básica de como o poder é conquistado parece excessivamente ingênua; e não porque seus experimentos ou dados estejam errados, e sim porque a interpretação deles carrega no idealismo.
Sem dúvida: a distinção entre o poder que é tomado à força (e, em geral, de curta duração) e o poder real, que é dado voluntariamente, é boa. Mas Keltner não considera que esse processo de reconhecer os benfeitores da comunidade e premiá-los com o poder (ou seja, com influência) é cheio de percalços e equívocos. No final das contas, não é necessariamente o que realmente serve aos demais, mas aquele que mais aparenta servir aos demais, que colhe os louros. E isso significa que Maquiavel está bem vivo mesmo hoje em dia, quando fundar uma ONG e escrever manifestos contra a opressão são caminhos melhores do que as armas para chegar ao topo.
Voltando para o mundo real, qualquer amostra de políticos, empresários, homens e mulheres influentes da mídia que selecionarmos revelará que há muito mais do que apenas altruísmo por trás das trajetórias de sucesso. Há autopropaganda, capacidade de chamar atenção, saber tomar para si o mérito alheio. Trump, Hillary, Lula, Aécio, Zuckerberg, Gates… Esses e tantos outros chegaram aonde chegaram só pela força de suas boas intenções? Infelizmente, não é só o topo da montanha que nos degenera; o próprio caminho para chegar lá parece exigir habilidades nem sempre boas do ponto de vista ético.
Assim, não é só Maquiavel, lá no século 16, a que Keltner se opõe. Sua decisão de enumerar “princípios do poder” nos remete imediatamente a outros livros de sucesso, como As 48 Leis do Poder, de Robert Greene, um clássico de 1998 da literatura amoral sobre o poder. E ao fazê-lo, apesar da boa pesquisa empírica, nem sempre Keltner leva a melhor. Podemos dizer, talvez, que fazer o bem é um elemento, mas dificilmente o único, na escalada do poder. A posição inversa é mais razoável: ter poder é um pré-requisito para fazer grandes atos de amor à humanidade. Mas, como o próprio Keltner aponta, se temos poder, talvez o desejo de fazer o bem não esteja mais em nós. Apesar da ingenuidade na tentativa de pintar o poder como uma força fundamentalmente boa, o livro guarda um ponto de vista interessante e experimentos bastante informativos.
(Joel Pinheiro da Fonseca)