Coronavírus: compensação de salários é questionada por juristas (Adriano Machado/Reuters)
Agência O Globo
Publicado em 3 de abril de 2020 às 13h15.
Última atualização em 5 de maio de 2020 às 16h46.
O texto da Medida Provisória 936 — que permite o corte de jornada e de salário dos trabalhadores e a suspensão do contrato de trabalho — contém um trecho considerado por juristas e advogados como inconstitucional, o que pode gerar
Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adins) no Supremo Tribunal Federal (STF). O principal problema é a possibilidade, instituída pela MP, de as empresas reduzirem salários e jornadas de trabalho por meio de acordo individual
com os trabalhadores. A Constituição Federal proíbe em seu artigo 7º a redução salarial, a menos que ela esteja prevista em acordo ou convenção coletiva.
Segundo especialistas, somente seria possível alterar essa sistemática se fosse editada uma Emenda Constitucional, com tramitação mais lenta no Congresso Nacional, para possibilitar a redução por meio de acordo entre empregado e empregador. Se a matéria for judicializada, o STF dará a palavra final.
"O acordo individual não é permitido como instrumento à luz do artigo 7 da Constituição Federal. A redução de salarial e de jornada de trabalho precisa ser feita por acordo coletivo com a participação os sindicatos, mas acho que, diante de uma pandemia, o Judiciário poderá avaliar que são medidas em caráter excepcional e autorizar o recurso do acordo individual", avalia Juliana Bracks, do escritório Bracks Advogados Associados.
A suspensão do contrato de trabalho também pode ser contestada no Judiciário. Trabalhadores que tenham suspensão do contrato de trabalho ou redução salarial e de jornada terão benefício do governo que pode chegar a 100% do que receberiam de seguro-desemprego em caso de demissão (que hoje varia entre R$ 1.045 e R$ 1.813,03). O valor do pagamento dependerá do faturamento anual da empresa e da faixa salarial do empregado.
"A MP é uma medida emergencial e uma tentativa de diminuir demissões em massa, mas ela pode ensejar ações de inconstitucionalidade, e este é um ponto sensível que deve trazer discussão. A figura do acordo individual pode ser questionada por juízes dos Trabalho, embora haja decisões recentes do Supremo possam relativizar isso. A maneira mais segura é via negociação coletiva, pelas contrapartidas que estão sendo oferecidas, mas a possibilidade de ser reconhecida a validade do acordo individual pelo momento excepcional que vivemos é grande", pontua Flavio Aldred Ramacciotti, especialista em Direito do Trabalho do Chediak Advogados.
O valor do pagamento do benefício compensatório ao trabalhador dependerá do faturamento da empresa e da faixa salarial do empregado. No caso de empresas com faturamento acima de R$ 4,8 milhões, se houver suspensão de contrato, o empregador deverá arcar com 30% do valor referente do salário.
A questão para juristas é que esse benefício de ajuda compensatória mensal que não terá natureza salarial, mas sim indenizatória, o que prejudica o trabalhador, porque esse valor não contaria para o cálculo de contribuição previdenciária, férias, 13º salário ou Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). A empresa, por outro lado, ainda ganha, porque poderá abater esse valor de seu lucro para cálculo de Imposto de Renda (IR) ou Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL).
"Este é um incentivo a mais do governo à empresa para pressionar pela manutenção de emprego, mesmo o Estado abrindo mão de receitas importantes com essas isenções fiscais e previdenciárias, ou seja, é menos dinheiro para governo pós-crise. Para o empregador, é um incentivo para evitar a dispensa. O governo está dizendo "é vantajoso para você fazer o acordo de suspensão e não dispensar agora. Pode pagar esses 30% e ficar tranquilo, porque não vai ter custo na folha". Na prática, o cálculo do empregador será os custos com as verbas rescisórias do empresário em contrapartida à manutenção do emprego com 30% do salário, sem encargos", explica Aline Fidelis, sócia de área trabalhista do escritório Tauil & Chequer Advogados.
Pela Medida Provisória 936, as empresas poderão negociar com cada empregado, independentemente da faixa salarial, um corte salarial de exatamente 25%. Para cortar 50% ou 70%, a negociação poderá ser individual apenas com funcionários de duas faixas salariais: até três salários mínimos (R$ 3.117) ou mais de R$ 12.202.
"A lógica é de que a redução não seria tão significativa para os trabalhadores com a menores faixas salariais, porque a renda seria complementada pelo benefício pago pelo governo. Do outro lado, quem ganha acima de dois tetos do INSS e tem curso superior já é considerado hiperssuficiente pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), após a reforma trabalhista. Não tem nenhum beneficio para o emprego (a MP), salvo a própria manutenção do emprego", avalia Marta Alves, sócia do escritório Galdino & Coelho Advogados.
Outro ponto que pode ser motivo de questionamentos é a tentativa de redução de jornada e de salário no caso dos trabalhadores que estão em trabalhando de casa em teletrabalho. A reforma trabalhista alterou este dispositivo para esses funcionários e prevê que eles trabalhem predominantemente de forma remota, sem controle de jornada e, portanto, sem direito ao recebimento de horas extras.
"Muitas empresas estão com os trabalhadores exercendo as atividades de casa, e este será um ponto discutido em processos trabalhista futuros. Se não tem uma jornada controlada, como o empregador reduziria a jornada, se ele não a controla", questiona Marta Alves.
Aline Fidelis, sócia da área trabalhista do escritório Tauil & Chequer Advogados, defende que não basta o anúncio de ações isoladas e afirma que é preciso um conjunto de medidas no enfrentamento da pandemia do novo coronavírus. Para ela, as empresas que já iriam demitir seus funcionários dificilmente voltarão atrás da decisão:
"Quem já ia dispensar, vai demitir com ou sem MP. O desemprego virá porque, na verdade, já começou em janeiro. Mas acho que a MP traz um pouco de esperança, com a possibilidade de manutenção de emprego pós-crise pela estabilidade que o texto do governo prevê para quem assinar o acordo com a empresa. Resolve o problema? Não, mas pode ajudar a minimizar as consequências desta pandemia", pondera Fidelis.