ESTÁTUA DE MARX NA FRENTE DO TEATRO BOLSHOI, EM MOSCOU: apesar de decisão de retirá-la, monumento segue firme no local / Justin Masterson
Da Redação
Publicado em 6 de janeiro de 2018 às 07h58.
Última atualização em 8 de janeiro de 2018 às 09h39.
Karl Marx – Grandeza e ilusão
Autor: Gareth Stedman Jones
Editora: Companhia das Letras
784 páginas
R$ 79,90
e-book: R$39,90
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Em 2018, os marxistas de todo o mundo deverão se unir para homenagear os 200 anos do nascimento de Karl Marx e, mais ainda, o aniversário de 150 anos da sua maior obra, O Capital. É verdade que a quantidade de adeptos desta doutrina diminuiu muito ao longo dos séculos, mas há ainda um bom número deles espalhados pelos mais diversos rincões do planeta.
Faz sentido: Karl Marx, nascido em 1818, foi um prodigioso pensador, filósofo e economista cujas teses e reflexões influenciaram o comportamento e a vida de milhões de pessoas e foram determinantes nos rumos políticos e econômicos do planeta durante todos esses anos.
O Manifesto Comunista, escrito em 1848 por Marx e Friedrich Engels, é uma das obras mais lidas, interpretadas e utilizadas na história da humanidade. Estima-se que, nas primeiras décadas do século XX, metade da população vivia em países que se definiam como “marxistas” — ainda que esse rótulo seja objeto de polêmicas.
O marxismo foi utilizado como fundamento para as revoluções populares na Rússia, China, Vietnã, Coreia do Norte e Cuba (e, não raramente, para o exercício de ditaduras sangrentas) que contribuíram decisivamente para o cenário político dos últimos 100 anos, para a Guerra Fria e para uma intensa polarização de ideias que persiste até hoje. Foram muito raras as personalidades históricas que marcaram, com sua obra, tão profundamente a humanidade como o fez Karl Marx. Mas com um detalhe interessante: ele não era marxista.
Essa é uma das mensagens importantes que Gareth Stedman Jones, um respeitável professor de História Política da Universidade de Londres e de Cambridge, procura mostrar na sua extensa, e algumas vezes digressiva, obra Karl Marx – Grandeza e Ilusão, já considerada como a “biografia definitiva” do pensador alemão e recém lançada no Brasil.
O título é conclusivo: a obra, de fato, tem o poder de convencer que Marx foi “grande”, um prodigioso e brilhante filósofo e pensador, mas que está longe de ser o cérebro por trás das articulações políticas feitas em seu nome — e, nesse sentido, “iludiu”.
Stedman Jones alega que muito do que é tido como “marxismo”, e que inspirou partidos socialistas e comunistas em todo o mundo, foi uma criação de Engels, seu fiel escudeiro, que interpretou as teorias de Marx depois de sua morte tornando-as acessíveis ao grande público.
“Se há alguma certeza é de que eu mesmo não sou marxista”, disse Marx, certa vez. Mas hoje também é possível, inclusive com a contribuição de Stedman Jones, ter outra certeza, a de que as proposições de economia política de Marx foram vítimas de apropriação indébita de um alegado “marxismo”, no qual suas ideias e ideais foram utilizados para fundamentar um sistema de governo assassino e desumano, como os de Stalin, na União Soviética, e de Mao Tsé-Tung, na China.
Mas ao longo do tempo, o marxismo vem sofrendo crises existenciais cíclicas e profundas, tanto pelo mau uso de seus princípios como também pelo anacronismo intrínseco de suas ideias e propostas produzidas no distante século XIX.
A obra de Marx, apesar de sua indiscutível profundidade e importância, é também datada — fundamentada no cenário político e econômico em que ele estava envolvido. Com a latente Revolução Industrial, os países mais adiantados da Europa ocidental — Inglaterra, França, Alemanha — estavam em transição da economia agrária para a produção industrial, o que gerou graves problemas em relação ao tratamento dado à mão-de-obra assalariada: jornadas de trabalho de 18 horas diárias, má remuneração, castigos corporais, mulheres e crianças executando tarefas pesadas.
Essa situação provocou uma reação natural em muitos pensadores da época que questionavam a noção desumana de progresso, desembocando numa onda de agitações sociais em 1848.
O pensamento de Marx foi um produto direto dessa situação e, ainda que tenha preconizado o colapso iminente do capitalismo, o que evidentemente não aconteceu, há certa unanimidade em reconhecer o mérito de algumas de suas teses.
Segundo Stedman Jones, Marx foi o primeiro economista político capaz de identificar o surgimento de um mercado mundial provocado pela indústria moderna e de apontar falhas no capitalismo rudimentar que então surgia — tais como a tendência de inventar necessidades, a subversão às práticas culturais e às hierarquias consagradas e sua capacidade de transformar qualquer coisa em objeto de venda.
“Para Marx, tratava-se de transformar, pela atividade revolucionária, todas as condições sociais que fazem do ser humano um ser escravo, miserável, mutilado, oprimido, explorado, alienado. Até o seu último sopro de vida, Marx sempre foi fiel a esse objetivo”, escreveu Ernest Ezra Mandel, economista e político belga e um dos mais importantes marxistas da segunda metade do século XX (morto em 1995), reconhecendo o caráter romântico e idealista de Marx, ao mesmo tempo em que propunha uma revisão em suas principais proposições.
Já o célebre historiador britânico Eric Hobsbawm, reconhecido como um importante nome da intelectualidade do século XX, considerava o marxismo como um fenômeno ideológico baseado num profundo senso de justiça social e que tinha uma característica muito presente: a utopia.
Ou “a crença de que, de um modo ou de outro, a sociedade chegará a uma solução melhor e mais humana”, segundo o que escreveu no livro Como mudar o mundo, publicado no Brasil em 2011 por ocasião de sua morte.
Mas a abordagem mais contemporânea sobre as teses de Marx, seus méritos e deméritos, vem do economista francês Thomas Piketty que com sua obra O Capital no século XXI tornou-se uma celebridade internacional na área econômica, considerado o autor mais vendido da história da economia.
Ele esteve no Brasil em setembro de 2017 num evento produzido pela instituição “Froteiras do Pensamento”, em Porto Alegre em São Paulo, no qual discorreu sobre sua principal tese. “Partilho com Karl Marx a preocupação de colocar a questão da distribuição da riqueza no centro da análise econômica”, disse ele.
“Mas é um absurdo me colocarem o rótulo de ‘marxista’. Sou da geração pós-Guerra Fria, pós-comunista. Nunca tive nenhuma tentação pelo comunismo. A questão para mim sobre o mercado ou a propriedade privada nem se coloca. Estou vacinado contra a retórica anticapitalista. A questão é colocar o mercado a serviço do bem comum e da democracia e não a democracia a serviço do mercado”.
A biografia de Stedman Jones é equilibrada nesse sentido: não tem a complacência que acomete muitos biógrafos quando analisam seus biografados — sabe valorizar sua prodigiosa obra, seu desempenho brilhante na filosofia e na economia política, mas faz justas críticas às previsões errôneas, às análises pouco fundamentas e à militância política hesitante e volúvel.
Acima de tudo, apresenta a faceta humana de Marx, um cidadão que viveu no exílio (principalmente em Londres), a maior parte do tempo à beira da miséria, corroído pela péssima saúde, perdulário, incapaz de sustentar a família e que teve a sorte de casar-se com Jane, uma mulher que inspirou respeito por sua beleza e inteligência extraordinárias.
Há algumas curiosidades interessantes na vida dele que permitem enxergá-lo além do mito que se criou em torno de seu nome e de sua influência. A começar pelo fato de ser um intelectual hedonista na juventude, orgulhoso de suas origens pretensamente nobres e hesitante em relação aos seus caminhos profissionais.
Na verdade, o que ele queria mesmo era ser poeta e o fracasso desse sonho deve ser festejado pela literatura: Marx foi obrigado a desistir da carreira em reconhecimento à sua total falta de vocação para a “coisa”. Foi então que ele decidiu por uma alternativa mais viável: ser jornalista. Mas não com aquele caráter investigativo, informativo, revelador e conciso que se imagina do jornalismo atual: seus textos, de análise política e econômica, às vezes ultrapassavam 40 páginas.
Ainda assim, a principal atividade dele foi escrever para diversas publicações de caráter político e, curiosamente, a mais importante delas era americana. Calcula-se que tenha escrito 487 artigos para o New-York Daily Tribune, o jornal mais influente do país cujos editoriais foram decisivos para a formação da opinião nacional dos Estados Unidos. Ironicamente, o Tribune defendia o protecionismo e a modernização.
Marx também defendia a modernização, por meio de seus próprios raciocínios, e não pregava a revolução antes que o desenvolvimento industrial ocorresse de forma a sustentar uma sociedade em transformação. E, em muitos aspectos, concordava com as teses da Adam Smith, autor da “Teoria da Mão Invisível” (ou seja, a regulamentação espontânea do mercado), o precursor do liberalismo que hoje é atribuído ao pensamento mais conservador.
Stedman Jones não faz essa referência em sua livro, mas insiste em mostrar aspectos do pensamento de Marx que contradizem os fundamentos do marxismo do século XX, inclusive expondo suas dúvidas e hesitações — como, por exemplo, o fato de Marx admitir a certa altura da vida que sua proposta de revolução proletariada só poderia ocorrer na Europa Ocidental, dilacerando a ideia planetária do marxismo. “O pensamento de Marx era muito mais sujeito a improvisações e variações do que as ideologias oficiais que emprestaram o seu nome anos depois”, escreve Stedman Jones.
Na longa narrativa de Stedman Jones sobrevem aspectos de articulações, enfretamentos e disputa de poder que lembram, e, de certa forma, ratificam, o famoso romance realista O Vermelho e o Negro, do escritor francês Stendhal, que se passa nessa mesma época, embora seja uma ficção — considerada uma das mais importantes obras da literatura mundial. Ambos os livros expõem a conturbada e inquietante situação política que viveu a Europa Ocidental na primeira metade do século XIX.
Mas Stedman Jones também exibe documentos e fatos que comprometem a aura legendária de Marx. Como, por exemplo, um relatório produzido pela espionagem a respeito de seus hábitos irregulares: “Ele leva a vida de um verdadeiro intelectual boêmio. Tomar banho, arrumar-se, trocar a roupa de baixo são coisas que raramente faz, e gosta de ficar bêbado. Embora passe dias e dias sem fazer nada, trabalha dia e noite com incansável resistência quando tem muito trabalho para fazer. Não tem hora certa para dormir e acordar. Frequentemente passa a noite acordado, e então se deita ao meio-dia no sofá, vestido da cabeça aos pés, e dorme até o começo da noite, sem dar a mínima para o que acontece à sua volta.” Ou então a revelação de que Marx era o pai biológico do filho da empregada que acompanhava a família.
Até mesmo na Rússia, o seu antigo prestígio quase divino, tem sido combatido: em 1991, muitos lugares que tinham o seu nome foram batizados novamente, inclusive a grande avenida em Moscou que deveria passar a se chamar Okhotny Ryad, o que, nesse caso, não aconteceu de fato.
Há o argumento de que Marx nunca foi à Rússia e que, afinal, os tempos, que o elegeram como o grande mentor da revolução, mudaram. O que justifica também a decisão oficial de remover a famosa escultura de Lev Kerbel, situado em frente ao Teatro Bolshoi, em Moscou, em que Marx é retratado com cabelos esvoaçantes e um olhar perdido no futuro. Ainda que não exista uma defesa popular por sua permanência, enigmaticamente, a estátua continua onde sempre esteve.