São Paulo - Quem anda pelas ruas cheias de arte e história de Florença, na Itália, tem a sensação frequente de que os últimos séculos não aconteceram.
E em termos de mobilidade social, talvez não tenham acontecido mesmo, de acordo com um estudo publicado recentemente no VoxEU, portal do centro de pesquisa de políticas públicas da União Europeia.
Guglielmo Barone e Sauro Mocetti, dois pesquisadores do Banco Central do país, partiram dos registros dos pagadores de impostos na cidade em 1427, que estão disponíveis online e incluem sobrenomes, profissões, rendimentos e riqueza.
Depois, compararam com os mesmos tipos de dados para 2011 e viram que as dinastias no topo da pirâmide eram as mesmas de seis séculos atrás.
"Estes resultados são ainda mais surpreendentes considerando as enormes reviravoltas políticas, demográficas e econômicas que ocorreram através de um período tão longo", diz o texto.
Eles notam que a probabilidade de pertencer hoje a certas profissões (como médicos e advogados) é maior quando seus ancestrais já eram parte deste grupo, o que sugere uma potencial forma de transmissão dessa riqueza.
Outros estudos
Os estudos da chamada "mobilidade intergeracional" sempre identificaram uma relação forte na transmissão de status social entre pais e filhos, mas concluiam que o efeito era dissipado através de várias gerações.
Recentemente, isso vem sido questionado. Também usando sobrenomes como base, os pesquisadores Gregory Clark e Neil Cummins encontraram uma persistência forte no status social de famílias inglesas através de 28 gerações entre 1170 e 2012.
"O status social é mais fortemente herdado do que até a altura. Esta correlação é constante através dos séculos, sugerindo uma física social de fundo que é surpreendentemente imune à intervenção governamental", diz o estudo.
Clark depois publicaria o livro "The Son Also Rises", no qual expande o método para vários países e encontra resultados semelhantes até em lugares como a China, que passou pela Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung e décadas de socialismo.
Ele arrisca uma tese polêmica para o fenômeno: o sucesso econômico pode estar relacionado com a transmissão de certas características genéticas.
"Pode ser uma combinação de genes, ou um gene único, mas não há nada que exclua a possibilidade de que os bem-sucedidos economicamente do mundo moderno são geneticamente diferentes de quem não é membro desse grupo", diz ele em entrevista para a PBS.
O raciocínio entra em um território determinista perigoso, mas Clark não diz que a falta de mobilidade justifica o status quo.
Pelo contrário: já que os "mais capazes" ascenderiam de qualquer forma, políticas redistribuitivas poderiam ser feitas sem grandes perdas econômicas.
Um ponto importante: o estudo de Barone e Mocetti destaca que a mobilidade em Florença era praticamente zero no século XVI e só começou a se mexer um pouco no século XX.
Talvez o futuro mostre não que a desigualdade atual já foi selada por nossos ancestrais, e sim que apenas demoramos demais para começar a enfrentá-la.
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1. Olhando para o abismo
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1/12 (Guillaume Bonn/Woods/Galimberti/Guillaume Herbaut)
São Paulo - A desigualdade foi por muito tempo relegada às margens do debate econômico, mas isso está mudando. Um dos motivos é o próprio aumento do fosso entre ricos e pobres, especialmente no mundo desenvolvido, detalhado no improvável best-seller "Capital no Século XXI", de Thomas Piketty. Também ganhou força a hipótese de que a desigualdade excessiva prejudica a economia e o
crescimento como um todo,
sustentada por novos trabalhos acadêmicos. Myles Little, um editor de fotografia em Nova York, entrou para o debate reunindo fotografias que lançaram seu flash sobre o problema. Disso saiu uma exposição que já passou por China, Dubai, Alemanha, Nigéria, Guatemala, Bósnia e Herzegovina e Chicago e agora segue para Austrália, País de Gales e Etiópia. O
livro, realizado com financiamento coletivo, conta com uma contribuição de
Joseph Stiglitz, vencedor do prêmio Nobel da Economia. Em agosto do ano passado, EXAME.com
fez uma primeira série com 15 fotografias, estudos e declarações sobre o assunto. Veja agora a segunda parte:
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2/12 (Guillaume Bonn/INSTITUTE)
O 1% mais rico da população já acumula metade de toda a riqueza global, segundo o Credit Suisse (
veja as pirâmides). Eles estimam que 3,4 bilhões de pessoas (71% da população) tem menos de US$ 10 mil em riqueza cada. Combinada, essa maioria absoluta tem em suas mãos apenas US$ 7,4 trilhões, uma fração (3%) do total de riqueza global. Nos países desenvolvidos, apenas 1 em cada 5 indivíduos está na categoria mais baixa, e muitas vezes de forma transitória. Na Índia e na África, são 90%.
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3/12 (Zed Nelson)
“A desigualdade não é uma consequência fatalística de leis econômicas. O entrelaçamento dos sistemas políticos e econômicos determina a distribuição de riqueza e renda. Uma agenda real iria simultaneamente aumentar a eficiência econômica, a justiça e a oportunidade. Os governos deveriam começar reduzindo os excessos no topo, implementando leis mais fortes de competição e criando um sistema mais progressista de renda, riqueza e do sistema tributário corporativo”. - Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Economia em 2001, em texto de apresentação do livro.
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4/12 (Paolo Woods/Gabriele Galimberti/INSTITUTE)
De acordo com o Credit Suisse, há 33,6 milhões de indivíduos com riqueza entre US$ 1 milhão e US$ 50 milhões - só que a imensa maioria está bem mais perto da base do que do topo desta faixa. Quanto mais para cima, mais estreita vai ficando a pirâmide. O 1% no topo tem metade de toda a riqueza global e há apenas 123.800 indivíduos "ultra-ricos" no mundo, com mais de US$ 50 milhões em riqueza. "Enquanto a base da pirâmide é ocupado por pessoas de todos os países em vários estágios de seus ciclos de vida, os indivíduos muito ricos estão altamente concentrados em países e regiões específicos e tendem a compartilhar estilos de vida mais similiares", diz o relatório.
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5/12 (Guillaume Bonn/INSTITUTE)
"Não dá para separar pobreza e desigualdade. Se você quer reduzir a pobreza, precisa pensar na distribuição dos resultados, porque eles estão interconectados. Cito uma frase do [economista inglês] Richard Tawney: "O que os ricos ponderados chamam de problema da pobreza, os pobres ponderados chamam de problema da riqueza". Segundo porque quando falamos de bem-estar, a maioria pensa em algum tipo de igualdade de oportunidade e chance de desenvolver seus talentos. E é impossível ter igualdade de oportunidade com desigualdade excessiva de resultados. A desigualdade de renda e riqueza significa que não temos um um campo de atuação equitativo. As pessoas podem ir para a mesma escola, mas ir com ou sem café da manhã faz a diferença se elas vão se beneficiar daquela educação." - Anthony Atkinson, professor da Universidade de Oxford e um dos maiores especialistas em desigualdade no mundo, em
entrevista para EXAME.com.
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6/12 (Guillaume Herbaut/INSTITUTE)
Atualmente, um terço da riqueza da
China está nas mãos do 1% mais rico enquanto os 25% na base da pirâmide tem apenas 1% da riqueza. As
conclusões são de uma pesquisa anual em 15 mil domicílios de 250 cidades feita pela Peking University e financiada pelo governo. O coeficiente de Gini do país saltou de 0,3 em 1980 para 0,49 em 2012, com queda para 0,45 em 2015 (nesta medida, 0 representa igualdade perfeita e 1 representa desigualdade total).
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7/12 (Mikhael Subotzky / Goodman Gallery)
Em países como Suazilândia, Georgia e Colômbia, o
patrimônio de um único bilionário local seria capaz de erradicar a pobreza entre seus habitantes. Na África do Sul, o efeito seria relativamente pequeno. A tese foi defendida pelos pesquisadores Laurence Chandy, Lorenz Noe and Christine Zhang em um post recente no Brookings Institution. Nas Filipinas e no Brasil, uma transferência do tipo levaria a pobreza para um quarto do patamar atual (considerando uma renda mínima de US$ 1,90 por dia por pessoa em dólares de paridade de poder de compra).
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8/12 (Jacqueline Hassink)
"A forma como o Estado trata os ricos é mais importante do que como trata os pobres”, diz Marcelo Medeiros, pesquisador do Ipea e um dos principais especialistas em desigualdade do Brasil, em
entrevista para EXAME.com. "É porque eles detém uma quantidade gigantesca de recursos: o 1% mais rico tem cerca de um quarto de toda a renda do Brasil e uma capacidade de alavancar a desigualdade muito maior do que a de qualquer pessoa na parte de baixo. É quase uma aritmética simples: importa muito mais a desigualdade entre esses ricos e o resto da população do que entre os pobres e quem está perto da pobreza", diz Medeiros.
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9/12 (Jorg Brueggemann/OSTKREUZ)
"Por que deveríamos estar acorrentados ao lugar onde nascemos? Não deveríamos todos ter o direito de se mover pelo planeta? Por qual teoria moral é ok ameaçar pessoas com violência só porque elas procuram uma oportunidade econômica? Quando olhamos a questão dessa forma, fica difícil negar que nossas fronteiras são um sistema de apartheid global. Quem consegue defender isso? No final das contas, acho que vamos evoluir para um ponto onde o direito de ir para onde quiser será considerado um direito humano universal" - Alex Tabarrok, PhD pela George Mason University e autor do blog Marginal Revolution, em
entrevista para EXAME.com.
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10/12 (Simon Norfolk/INSTITUTE)
A desigualdade entre diferentes países é um dos grandes motores da imigração global, mas "nenhum economista notável acredita que imigração seja um "enorme" problema" em si, diz Tabarrok. Uma pesquisa da Universidade de Chicago com economistas consagrados
confirma sua posição. Estudos diversos mostram que os imigrantes
criam mais empregos do que tomam e que em uma Europa envelhecida, eles
podem ser parte da solução. "Na média, imigração tende a aumentar os salários dos nativos. Ironicamente, são os países que mais aceitam imigrantes que geralmente se dão melhor", diz Tabarrok.
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11/12 (Henk Wildschut)
Menos de 1% das obras do mercado de arte são vendidas por mais de US$ 1 milhão, mas elas respondem por 57% do valor de vendas em leilões,
segundo um relatório recente. Este segmento cresceu 400% na última década, taxa quatro vezes maior do que o resto. É nesta categoria que está a obra da foto: Ushering in Banality, do artista americano Jeff Koons. Dentro deste universo, o nicho de obras acima de US$ 10 milhões cresceu ainda mais rápido: 1.000% no mesmo período. No ano passado, trabalhos de Modigliani e Picasso estabeleceram novos recordes com valores acima de US$ 170 milhões cada.
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12/12 (David Leventi/Anna Skladmann/Gabriele Galimberti & Paolo Woods)