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Da Redação
Publicado em 18 de março de 2010 às 10h42.
Quem diria? Durante a maior parte dos cinco anos do atual governo, a taxa de juro foi apresentada como uma questão de vida ou morte para a economia brasileira. O veredicto era quase unânime: ou se resolvia esse problema, e se resolvia depressa, ou o Brasil parava. Seria normal, então, que o assunto continuasse pegando fogo até hoje, pois o problema não foi resolvido: a taxa está em 11,25% ao ano, o que significa juros reais de 7%, e isso é muito mais do que os críticos da política monetária garantiam que o país podia agüentar. Mas o assunto não está pegando fogo -- ao contrário, sumiu do mapa. O Banco Central continua o mesmo, seu presidente, Henrique Meirelles, continua o mesmo e sua política de juros continua a mesma. De uns tempos para cá, entretanto, não se diz mais que a conduta do BC é servil aos banqueiros, ditada por Wall Street, tecnicamente errada, ideologicamente suspeita, antipopular, desnecessária, doentia, neoliberal e estúpida. Simplesmente não se ouve mais falar dessa história hoje em dia.
Na verdade, tanto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva como o presidente de seu Banco Central também estavam convencidos de que a questão era de vida ou morte para a economia brasileira; só que "vida" e "morte", para eles, significavam o contrário do que achavam os críticos. Manter a economia viva, no seu entendimento, era mantê-la com a inflação mais baixa possível. Tentar "conviver" com ela, como se cobrava do governo todos os dias, seria a morte. Pelo resto dos tempos, é claro, será possível ficar discutindo se era mesmo preciso, para combater a inflação, impor uma taxa de juro tão alta e durante tanto tempo. Será possível e inútil, pois a esta altura não dá mais para saber o que aconteceria se o que aconteceu não tivesse acontecido. O único fato realmente concreto que se tem hoje é que o objetivo do governo, em sua política de juros, foi atingido. Queria controlar a inflação -- e conseguiu controlar a inflação. Isso, sim, aconteceu de verdade, e foi vital para tornar possível cada um dos bons números que a economia brasileira está mostrando no momento.
Não foi fácil manter o leme nessa direção. Poucos setores da administração pública, durante o presente governo, tiveram de enfrentar tanta pancadaria como o Banco Central. Pior ainda, para Lula e Meirelles, é que as críticas mais incendiárias não vinham da oposição; o grosso da artilharia contra o BC sempre esteve dentro do próprio governo, no PT e nos "economistas de esquerda". Durante certo período, o vice-presidente José Alencar tornou-se uma celebridade por não perder uma única oportunidade de bater na taxa de juro. Falava-se que a política monetária só servia para atender aos interesses de "20 000 famílias"; outros críticos, menos ambiciosos, citavam 70 000 famílias. A economia brasileira estava sendo transformada em sucata. O BC estava matando empregos. O Brasil fora transformado num playground para a alta finança mundial aplicar aqui seu dinheiro. Meirelles tinha de ser excomungado.
Todo esse barulho, na prática, se traduziu em maciças pressões sobre o presidente da República. Exigia-se dele uma de duas decisões: ou mudava a política ou tirava o presidente do BC. Lula não fez uma coisa nem outra. Não se sabe o que ambos disseram, ao longo destes cinco anos, nas conversas que tiveram a portas fechadas. O que se sabe é o que o presidente fez: manteve Meirelles, avalizou juros que chegaram a 26,5% ao ano e superou as pressões. Uma das coisas mais difíceis em política é escolher corretamente os momentos em que é preciso ser intransigente. Lula, no caso do BC, escolheu certo. Hoje tem os fatos, e os números da inflação, a seu favor. E os críticos? Uns receberam cargos no governo e mudaram de canal. Outros se cansaram. A maioria, simplesmente, parece ter se desinteressado do assunto. O fato é que hoje ninguém abre mais a boca, nem nas entidades empresariais que anunciavam a ruína iminente do país, nem nas alas do PT em que se prega com mais barulho o fim do capitalismo, da globalização e do "modelo atual de desenvolvimento".
Henrique Meirelles não é um estrategista em economia. Não tem, pelo que se sabe, teorias sobre política econômica nem contribuições originais ao pensamento acadêmico na área. Dificilmente será cogitado para o Prêmio Nobel de Economia. A incumbência profissional que recebeu foi presidir o Banco Central do Brasil -- e seu trabalho, aí, só pode ser descrito como bem-sucedido. Meirelles, como presidente do BC, é pago para executar uma tarefa fundamental: assegurar a estabilidade da moeda. Tem outras, mas a que conta mesmo é essa. Cinco anos depois de Meirelles assumir o cargo, o desempenho da economia comprova que ele fez o que deveria ter feito -- e que Lula, ao lhe dar mão forte, possivelmente assegurou a viabilidade básica de seu governo. Seria difícil encontrar, em qualquer época ou lugar, um único caso de política monetária em que todas as decisões tomadas tenham sido corretas. O máximo que se pode esperar é que levem a uma situação melhor do que aquela que existia quando essa política começou a ser aplicada. No caso do BC do governo Lula, foi o que aconteceu.
Enquanto isso, nos Estados Unidos, a inflação medida pelo índice de preços no atacado, ou PPI, acaba de chegar perto dos 7,5% nos últimos 12 meses. Quem diria?
Entram os fatos
A verdade, desta vez, precisou de muito pouco tempo para aparecer. Ainda outro dia, nos últimos momentos do ano passado, o governo jurava que ninguém poderia administrar o país sem a CPMF, que acabava de falecer por decisão do Congresso. Com o fim do imposto do cheque, os cofres federais teriam 40 bilhões de reais a menos em 2008; onde achar esse dinheiro todo? A educação, a saúde e os "programas sociais" iriam sofrer diretamente com isso -- algo de dar medo, realmente, pois, se cada uma dessas coisas já andava mal, imagine então o tamanho do problema se ficassem piores ainda. Outros impostos da União foram rapidamente aumentados, como "compensação" ou por vingança, apesar de o presidente da República ter dito, pouco antes, que ninguém iria fazer "uma loucura" como essa. O PT, enfim, garantia que a oposição estava tentando dar nada menos que um "golpe de Estado" ao votar pelo fim da CPMF, pois tirava do governo 40 bilhões que seriam essenciais para mantê-lo vivo.
Dois meses depois, ao se divulgar os resultados da arrecadação de janeiro de 2008, sai a conversa fiada e entram os fatos: a Receita Federal arrecadou no primeiro mês deste ano, sem um real de CPMF, 20% mais do que em janeiro de 2007, com a CPMF toda. Foram mais de 62 bilhões de reais encaixados nestes 30 dias, o que faz pensar quanto dinheiro entrará no cofre da União até o final de 2008. Mais de 800 bilhões de reais? Talvez 1 trilhão? O jogo, é claro, está só começando. Ao comentar os números de janeiro, o secretário da Receita Federal, Jorge Rachid, disse que o resultado foi "atípico"; não há, segundo ele, garantia de que o ritmo vá se manter assim até dezembro. Nada mais natural que o secretário assuma esse tipo de enfoque. Ainda não nasceu um coletor-chefe de impostos capaz de admitir, em qualquer situação, que o Fisco está arrecadando demais -- isso não faz parte de seu DNA nem deveria mesmo fazer, pois não é anunciando céu azul que se exerce esse ofício. Mas não há sinais, quando se observa neste momento o funcionamento da economia brasileira, de alguma inversão no rumo que já vem sendo seguido há tempos nem de mudança na lógica que sustenta o crescimento atual. Os próximos meses vão mostrar com mais precisão o que se pode esperar de 2008. Mas o que há de concreto, hoje, é algo muito claro: o Brasil não precisava, nem precisa, de CPMF nenhuma. Está arrecadando muito mais, depois do seu enterro, do que arrecadava quando ela existia.
Onde foi parar o "golpe de Estado"? Também não se ouvirá falar mais, daqui para diante, da coleção de desgraças que já deveriam estar ocorrendo agora pela ausência dos 40 bilhões de reais antes trazidos pelo imposto do cheque. O momento, ao contrário, é de buscar um sistema tributário mais racional, mais justo e mais eficaz; é o que se espera da reforma que o governo acaba de enviar ao Congresso. Não poderia haver hora melhor para isso. Discutir impostos com o caixa cheio já é difícil o suficiente. Com o caixa a perigo, então, não adiantaria nem começar.