VOTAÇÃO DO IMPEACHMENT: a retórica, no Brasil, é uma arte abandonada / Marcelo Camargo/ Agência Brasil
Da Redação
Publicado em 23 de abril de 2016 às 08h16.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h31.
No Fedro, diálogo de Platão recentemente traduzido por Maria Cecília dos Reis e publicado pela Penguin – Companhia das Letras, dois personagens, Sócrates e Fedro, discutem os temas universais do amor e da retórica.
Sócrates dá mostras de sua habilidade retórica ao compor dois discursos antagônicos sobre o tema do eros, modalidade de amor que inclui tanto paixão como desejo carnal: o primeiro é uma crítica convencional ao estar apaixonado, estado em que o homem age de maneira tola e egoísta, e o segundo é a defesa justamente da paixão como uma forma elevada, literalmente divina, de amor à beleza, preferível aos bens mundanos. Tendo mostrado sua habilidade nos discursos sobre o amor, os dois personagens passam então a dialogar sobre a retórica, a arte de falar persuasivamente, que Sócrates, ironicamente, não vê com bons olhos.
Para Sócrates, o que se costuma chamar de retórica não passa de um conjunto de artimanhas sem grande valor. A verdadeira retórica deveria ter duas características: conhecer bem os diferentes tipos de alma para ser capaz de persuadir sempre da maneira mais eficaz; e mover as almas para o amor ao bem e a prática da virtude.
A leitura do Fedro é, ao mesmo tempo, um mergulho em um capítulo central da história do pensamento de nossa civilização e uma janela para um mundo completamente estranho a nós, a começar pelo contexto em que se dava a paixão: a relação homossexual de um homem maduro por um adolescente.
Assim, as pontes para o mundo atual ficam a cargo do leitor, mas um ensaio introdutório à edição, de James H. Nichols Jr., além de analisar o pensamento de Platão, nos ajuda ao relacionar o diálogo com o presente. Mais especificamente com os EUA dos dias de hoje, no qual, segundo Nichols, a retórica está em baixa. Ele atribui isso a duas tradições com forte peso na cultura americana: o iluminismo, que aposta na ciência e na objetividade em oposição ao caminho essencialmente enganoso da retórica; é a razão versus os sentimentos. E o romantismo, que valoriza a autenticidade que brota de uma mente particular, menosprezando as convenções e modos padronizados da retórica clássica. É a essência versus a aparência.
No Brasil, sentimentos e aparências têm força inegável, mas, mesmo assim, a retórica também é uma arte abandonada. Basta pensar na baixíssima qualidade, e mais, na irrelevância do discurso político entre nós. Nossa presidente e sua notória incapacidade de falar em público calham de ser a ilustração perfeita do deserto retórico em que vivemos. Suas pérolas de inépcia e nonsense alegram a vida da população, mas ninguém supõe que estejamos perdendo algo muito importante. As falas de deputados, senadores e juízes, se não são tão desastrosas, são igualmente irrelevantes nos rumos do país.
Isso porque a própria ideia de que a persuasão tenha um papel na vida política está em xeque. Nenhum deputado está no Congresso para ser persuadido e nenhum julga que possa persuadir os demais com palavras ou diferentes visões do bem. A única “persuasão” possível é a do interesse de perpetuar a própria influência, e essa não passa pelos discursos.
Da parte do eleitorado, vale algo similar: candidatos não competem com base em argumentos, em uma tentativa de persuasão que opere em nível minimamente racional. A adesão a um candidato ou partido é igual à torcida para um time de futebol. Pode mudar, especialmente quando parte do eleitorado sente que seu time vai perder, mas essa mudança não passa pelos canais tradicionais de convencimento que a retórica pressupõe. Ao mesmo tempo, a população sente-se desconectada do que acontece na política fora do período eleitoral, e vê com desprezo qualquer manifestação dos políticos de todos os lados.
De certa maneira, estamos imunes aos males que Sócrates identificava na retórica comum, não porque cultivemos um amor mais puro à verdade, mas porque a própria faculdade racional e a preocupação com a virtude não parecem ter ligação com o jogo de interesses e rivalidades que é a política. A retórica não encontra os pressupostos mínimos para se desenvolver.
Já com relação ao amor, padecemos do excesso. O Brasil, para o bem ou para o mal, é visto e se vê como uma terra particularmente afeita ao eros, o amor permeado de desejo. E embora o desejo insaciável, a desmedida, tenha seu lado ruim – basta pensar que, nas últimas semanas, descobriu-se que uma prostituta atende rotineiramente aos deputados dentro da Câmara – é nossa afirmação do eros em sua dimensão carnal que permitiu algumas de nossas maiores virtudes: que apesar do racismo, fôssemos um país miscigenado e, apesar do machismo, valorizássemos sem culpa a sensualidade feminina.
No nosso horizonte moral desenha-se a possibilidade de uma relação menos conflituosa com o eros carnal do que aquela que Sócrates e Platão propunham e que dominou, via cristianismo – segundo Nietzsche, “platonismo para as massas” –, o Ocidente. Para Sócrates, o amor digno dos deuses era aquele que se consumava na contemplação, na união dos espíritos e na elevação moral do outro, excluindo forçosamente o sexo. No Brasil isso não cola, e por isso mesmo um outro tipo de sociabilidade humana, menos tensa, se vislumbra como possível e desejável, se é que conseguimos pensar um Brasil ideal para além dos muitos problemas que acometem o Brasil real.
A retórica, se tiver algum papel no Brasil moderno, pode nos ajudar nessa construção do ideal. O que queremos ser está em aberto – não existe nem como realidade factual e nem como algo a ser descoberto pela razão fria. Para além de ajustes fiscais e metas de inflação, há um país que gostaria de ser mais do que é e que se vê profundamente desconectado das autoridades que pretendem representá-lo. Esse país precisa ser criado e desejado antes de tudo no plano da retórica, para nos mover em sua direção.
O arrebatamento amoroso que Sócrates defende com grande eloquência é uma irupção divina na vida humana. Contemplar o belo neste mundo nos faz lembrar da ideia eterna do Belo que nossa alma contemplou antes de encarnar. Essa reação à beleza eleva o homem a um patamar superior, no qual a oposição radical entre corpo e espírito é atenuada e os dois são integrados no êxtase divino. A retórica, ao recuperar a possibilidade de mirar um mundo melhor, talvez possa cumprir para nós um papel similar ao do eros: incluir a mente – nossa faculdade de pensar – no projeto que nosso corpo já pressente e deseja.
(Joel Pinheiro da Fonseca)