Rede de ONGs e fundações garante ajuda a territórios com pouca presença do poder público (Ricardo Moraes/Reuters)
Rodrigo Caetano
Publicado em 3 de abril de 2020 às 08h00.
Última atualização em 3 de abril de 2020 às 08h00.
Todos os dias, o carioca Celso Athayde municia seus contatos de WhatsApp com dezenas de vídeos e fotos das ações da Central Única das Favelas (Cufa) no combate ao novo coronavírus. Athayde é um dos fundadores da organização, que há mais de 20 anos trabalha para desenvolver as comunidades potentes, como ele prefere chamar, espalhadas pelo Brasil. As iniciativas divulgadas nas mensagens abordam desde a distribuição de comida em favelas do Ceará, até exemplos de empreendedorismo na periferia de Frederico Westphalen, no Rio Grande do Sul.
“Eu poderia mandar 1 milhão de fotos e vídeos. Mas não precisa. Imagine as mães cujos filhos são especiais, imagine essas mulheres desempregadas e sem ter com quem deixar as crianças, imagine elas sem nenhuma chance de renda”, escreve Athayde, antes de apresentar o novo programa da Cufa, chamado Mães da Favela.
Em parceria com o Instituto Unibanco, a organização irá fornecer bolsas alimentação para mulheres, no valor de 120 reais. A meta inicial era atingir cinco mil mães em 12 estados. “Mas, como o Instituto assumiu integralmente o projeto, vamos subir a régua”, diz ele. “A meta agora são 10 mil mães em 17 estados”.
A crise do novo coronavírus gerou uma onda de solidariedade que atingiu grandes empresas e a elite, que se mobilizaram para angariar um volume considerável de recursos filantrópicos. Segundo levantamento da Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR), organização que promove o financiamento de ações sociais, até o dia 1° de abril, haviam sido contabilizados mais de 840 milhões de reais em doações para combater a covid-19. O montante abrange doações de empresas, fundações e indivíduos, além de iniciativas de financiamento coletivo (crowd funding).
Esse dinheiro tem sido canalizado para diversas ações sociais e de saúde. São projetos de impacto, como o da construção de um anexo ao Hospital Municipal do M’Boi Mirim, na periferia de São Paulo, que aumentará a capacidade da unidade em 100 leitos. A obra custará cerca de 10 milhões de reais e será financiada por Ambev, Gerdau e pelo Hospital Albert Einstein.
A onda solidária chegou a unir antigos rivais, como os três maiores bancos do Brasil, Bradesco, Itaú e Santander, que se comprometeram a importar da China 5 milhões de testes para detectar a covid-19, ao custo de mais de 20 milhões de dólares. O banco BTG Pactual, que faz parte do grupo que controla a Exame, anunciou a doação de 50 milhões de reais para ações de combate à pandemia.
O impacto mais rápido, no entanto, é gerado por ações na ponta, ou seja, nas comunidades. Enquanto o governo e o parlamento ainda debatem sobre a melhor forma de recuperar a economia e dar algum alento aos mais necessitados, ONGs como a Cufa estão há duas semanas distribuindo cestas básicas, material de limpeza, kits de higiene e, como no caso do Mães da Favela, transferindo renda diretamente a mulheres chefes de família. Para isso, contam com a solidariedade e recursos financeiros oriundos de empresas e fundações.
A estrutura que viabiliza a ajuda a esses territórios, a maioria com pouca ou nenhuma presença do poder público, é formada por uma rede de organizações sem fins lucrativos, lideranças comunitárias e entidades filantrópicas que vem sendo criada há décadas. “Faz 20 anos que desenvolvemos esse relacionamento”, afirma Ricardo Henriques, superintendente do Instituto Unibanco, fundo patrimonial ligado à família Moreira Salles. “É algo que não se faz do dia para a noite e que é fundamental em momentos de crise”.
A qualidade e o alcance dessa rede comunitária determinam a velocidade com que os recursos chegam aos necessitados. Essa mesma rede fornece os dados necessários para que as iniciativas de auxílio sejam efetivas. Como bônus, a presença do terceiro setor ajuda a movimentar a economia das localidades onde atuam. “Quando eu entrego uma cesta básica ou um kit de higiene, já promovo um incentivo econômico. Mas, ainda tem a pessoa que faz a entrega, que é alguém da comunidade e recebe um salário”, afirma Henriques. “Por isso, a primeira coisa a ser feita numa situação como a atual é garantir o fluxo de recursos para essas organizações”.
Em meio ao que pode ser a maior crise econômica de todos os tempos, e graças a um poder de mobilização construído ao longo de décadas, o terceiro setor reafirma sua importância ao oferecer à sociedade a capacidade de alcançar os territórios mais esquecidos. “A questão não é ocupar um espaço que deveria ser do governo, é complementar os esforços de desenvolvimento”, afirma Angela Dannemann, superintendente do Itaú Social, braço de desenvolvimento social do banco Itaú. “Quanto mais participativa for a sociedade civil, melhor será para a economia e para a democracia”.
Para Angela, passada a crise, o terceiro setor irá recuperar o prestígio, abalado nas últimas eleições pelas críticas promovidas pelo então candidato Jair Bolsonaro e seus apoiadores. O impacto positivo das iniciativas sociais implementadas durante a pandemia se encarregará disso.
No dia 28, sábado, pelo WhatsApp, Celso Athayde comemorava a entrega de material de higiene para 13 mil famílias em 237 favelas de São Paulo. Na terça, lamentou a morte do amigo Valdir, da favela Jardim Alba, também na capital paulista, vítima do novo coronavírus. Na quarta, celebrou a entrega de 504 mil sabonetes no Rio de Janeiro, doados pela JBS. Dois dias depois, lançou um programa de transferência de renda para 10 mil mulheres em 17 estados. “Vale a pena fazer as coisas direito, vale a pena ser correto, obrigado a todos que estão nessa rede de loucos e loucas”, afirmou na quinta-feira. É assim que o terceiro setor mostra o seu valor.