Economia

Com o fim do auxílio emergencial, desigualdade pode voltar aos anos 1980

O efeito que o auxílio causou na economia aumentou a pressão para a elaboração de um programa social mais robusto a partir do ano que vem

Auxílio: índice de pobreza, situação de quem recebe até um terço do salário mínimo (hoje, 348 reais), caiu de 18,7% em 2019 para 11% em setembro de 2020 (Andre Coelho/Getty Images)

Auxílio: índice de pobreza, situação de quem recebe até um terço do salário mínimo (hoje, 348 reais), caiu de 18,7% em 2019 para 11% em setembro de 2020 (Andre Coelho/Getty Images)

EC

Estadão Conteúdo

Publicado em 2 de dezembro de 2020 às 16h20.

Última atualização em 2 de dezembro de 2020 às 16h36.

O fim do auxílio emergencial pode levar a desigualdade no país de volta ao patamar dos anos 1980. O índice de pobreza, situação de quem recebe até um terço do salário mínimo (hoje, 348 reais), caiu de 18,7% em 2019 para 11% em setembro de 2020. Sem os benefícios pagos pelo governo federal, esse indicador pode disparar e alcançar 24%, ou seja, quase um quarto de toda a população, nos cálculos do sociólogo Rogério Barbosa, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Com o auxílio emergencial e o benefício pago para quem teve o salário reduzido ou o contrato suspenso, a renda média da população brasileira foi de 1.321 reais em setembro, quando já houve flexibilização do isolamento social e retorno das pessoas às atividades. Sem a ajuda do governo, seria de 1.187 reais.

Entre os 40% mais pobres, a renda aumentou, recuperando uma perda observada desde 2014. Ou seja, as pessoas não saíram efetivamente da pobreza, mas experimentaram uma situação que não era observada há pelo menos seis anos.

De acordo com Barbosa, o auxílio diminuiu a diferença de renda entre os mais pobres e os mais ricos, o que pode ser verificado pela redução do índice de Gini, que mede a desigualdade. Com o fim do benefício, a economia ainda não recuperada e o aumento na fila do desemprego, porém, a desigualdade no país pode voltar ao patamar de 1980, segundo o pesquisador.

Pelas contas dele, a informalidade — que está em torno de 40% — pode alcançar mais da metade da população. A pesquisa Pnad-Covid do IBGE indica que 15,3 milhões de pessoas não procuraram trabalho por causa da pandemia ou por falta de trabalho na localidade em setembro. Na avaliação do especialista, esse grupo tentará voltar ao mercado de trabalho no próximo ano e o universo de desempregados pode chegar a 30 milhões de pessoas, mais do que dobrar o número atual.

Nesse cenário, um quarto da população pode ficar na pobreza, situação parecida com a dos anos 1990, de acordo com o pesquisador (os números desse indicador não são comparáveis com a década de 1980). "Quando a pandemia passar, nem sabemos quando vai acontecer, os pequenos negócios não voltarão a funcionar automaticamente. Se não houver um tipo de auxílio para segurar as pessoas que ficarão fora do mercado de trabalho, podemos ter problemas muito graves com a desigualdade", afirmou Barbosa.

Prorrogação

No mês passado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, admitiu a possibilidade de prorrogar o auxílio emergencial se houver uma segunda onda de covid-19. Logo depois, o chefe da pasta afirmou que o governo vai manter o Bolsa Família como está se não houver uma nova medida com solidez fiscal. Setores do próprio Executivo e do Congresso Nacional, porém, querem tirar do papel um programa de renda mínima.

O governo prevê gastar um total de 322 bilhões de reais com o auxílio emergencial neste ano. Até ontem, foram pagos 275,8 bilhões de reais em benefícios de 600 e 300 reais para 68 milhões de beneficiários. Um benefício do mesmo tamanho é considerado inviável a partir do próximo ano, quando o governo volta a ter de respeitar o teto de gastos, regra que proíbe o crescimento real de despesas. Em 2020, os gastos relacionados à crise ficaram fora dessa limitação.

O efeito que o auxílio causou na economia aumentou a pressão para a elaboração de um programa social mais robusto do que o Bolsa Família a partir do ano que vem. O presidente Jair Bolsonaro, que teve índices de popularidade impulsionados pelo benefício ao longo do ano, planeja lançar um programa de renda, mas ainda não anunciou uma fonte de financiamento e quais despesas serão cortadas para abrir espaço para o pagamento deste eventual novo programa. O governo tem prometido deixar tudo dentro do teto.

Redução do auxílio piora renda e mais pessoas caem na pobreza ou miséria

Cálculos do economista Daniel Duque, pesquisador da área de Economia Aplicada do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), mostram o peso da redução do auxílio emergencial no bolso dos brasileiros. O número de pessoas vivendo em situação de pobreza aumentou em mais de 8,6 milhões na passagem de agosto para setembro, enquanto a população em situação de miséria avançou em mais de 4 milhões. Pago pelo governo federal para amenizar os efeitos da pandemia, o auxílio teve seu valor reduzido no período de 600 para 300 reais.

Para chegar a esses números, Duque considerou as informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Covid (Pnad Covid-19) de outubro, divulgada ontem pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). "O pior momento vai ser em janeiro [de 2021]", afirmou o pesquisador, em referência à data prevista para o fim do benefício — a despeito de o mercado de trabalho ainda não ter recuperado o ritmo pré-covid. Pressionada a manter o pagamento por mais alguns meses, a equipe econômica diz que trabalha na criação de programa para expandir o microcrédito.

Pesquisador da consultoria IDados, Bruno Ottoni, também fala com preocupação sobre o início do próximo ano. "O auxílio vai acabar e os trabalhadores que puderam ficar em casa com alguma renda no período de pandemia não terão alternativa, terão de buscar trabalho. Vai acabar também o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, que beneficiou até 9,5 milhões de trabalhadores da iniciativa privada. Então, teremos um corte expressivo e abrupto de dois programas muito relevantes", disse ele.

Pelos números pesquisados por Duque, a população vivendo na extrema pobreza saltou de 5,171 milhões, em agosto, para 9,251 milhões em setembro — um aumento de cerca de 4,080 milhões. A proporção da população brasileira vivendo nesta condição cresceu no período de 2,4% para 4,4%. Já a proporção de brasileiros vivendo na pobreza subiu de 18,3%, em agosto, para 22,4% em setembro. Em números absolutos, esse grupo passou de 38,766 milhões para 47,395 milhões.

Pelos critérios das Nações Unidas, a pobreza extrema engloba pessoas com renda disponível familiar per capita inferior a 1,90 dólar por dia, na conversão pelo método de Paridade de Poder de Compra — que não leva em conta a cotação da taxa de câmbio, mas o valor necessário para comprar a mesma quantidade de bens e serviços no mercado interno de cada país em comparação com o mercado nos Estados Unidos. Já a população que vive abaixo da linha de pobreza é aquela com renda disponível de  5,50 dólares por dia. "Boa parte dessa população tem a renda altamente dependente do auxílio", lembrou Duque.

Os dados da Pnad Covid de outubro mostraram que os 10% de brasileiros mais pobres tinham renda domiciliar per capita de apenas 31,69 reais por mês no período, se excluído o auxílio emergencial. Ou seja, mais de 21 milhões de brasileiros tinham apenas 1,05 real por dia para sobreviver considerando todo o restante de renda disponível. Com a ajuda do auxílio, esse valor subiu a 219,96 reais mensais, o equivalente a 7,33 reais por dia.

Sem emprego

Segundo o pesquisador do Ibre/FGV, a expectativa é que haja alguma melhora na desigualdade de renda nos próximos meses a partir de uma recuperação mais consistente do mercado de trabalho e mesmo com a estabilidade do valor do auxílio emergencial até dezembro deste ano. No entanto, a melhora no emprego não deve chegar a mudar a situação dos miseráveis, que têm mais dificuldade de se inserir no mercado de trabalho. "A melhora do emprego, sem dúvida, dificilmente afeta positivamente a pobreza extrema. A pobreza não extrema é mais sensível ao mercado de trabalho", disse Duque.

"Elas estão em regiões ou localidades que são muito pouco dinâmicas, com a economia mais fraca, que terá mais dificuldade para ter um dinamismo na geração de vagas, como o interior do Nordeste", justificou Duque.

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