Economia

Coisas assim levaram ao impeachment de Dilma, diz Meirelles sobre desconfiança com contas públicas

Em entrevista à EXAME, ex-ministro e presidente do BC pondera que a situação atual de contabilidade fiscal não está parecida com a da ex-presidente, mas gera preocupação

Henrique Meirelles: “Foram 15 anos de inflação acima de 100% ao ano antes do real.  (Leandro Fonseca/Divulgação)

Henrique Meirelles: “Foram 15 anos de inflação acima de 100% ao ano antes do real. (Leandro Fonseca/Divulgação)

Luciano Pádua
Luciano Pádua

Editor de Macroeconomia

Publicado em 29 de setembro de 2024 às 08h00.

Última atualização em 29 de setembro de 2024 às 10h01.

Partiu do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a sugestão para que Henrique Meirelles se filiasse ao PSDB. A conversa aconteceu em 1995. Em 2003, o então tucano Meirelles assumiu o Banco Central do petista, posição em que se manteve até 2011. O episódio marca algumas das ironias da vida do banqueiro, reunidas agora no livro "Calma sob pressão: O que aprendi comandando o Banco de Boston, o Banco Central e o Ministério da Fazenda".

Aos 79 anos, Henrique Meirelles talvez seja um dos maiores conhecedores das entranhas da economia brasileira. Como presidente do BC, ele modernizou a instituição, manteve a inflação sob controle e acumulou reservas internacionais que hoje garantem tranquilidade ao país. Posteriormente, como ministro da Fazenda no governo de Michel Temer, entre 2016 e 2018, Meirelles e sua equipe iniciaram reformas estruturantes, como o Teto de Gastos, a reforma trabalhista e medidas de ajuste fiscal que reverteram a tendência de queda da economia. Mais recentemente, ele atuou na gestão da Fazenda do estado de São Paulo, e promoveu uma reforma administrativa que liberou verba para gastos em investimentos.

Em conversa com a EXAME, Meirelles traz causos pouco conhecidos, como uma inusitada conversa entre ele e a sobrinha do célebre presidente americano John F. Kennedy, na qual ela se mostrou embasbacada por um brasileiro ser presidente do Bank of Boston, um tradicional banco americano conhecido por ser o reduto dos WASP (branco, anglo-saxão e protestantes, na tradução), nos EUA.

Do passado ao presente, Meirelles é enfático sobre as recentes desconfianças de que a equipe econômica de Fernando Haddad esteja "maquiando" dados para atingir a meta do arcabouço fiscal.

"Houve uma mudança de classificação ou uma mudança de estrutura do gasto. Isso é algo que o governo precisa tomar cuidado. Pode parecer atraente no curto prazo", diz Meirelles. "Mas é a pior solução, porque começa a haver uma situação em que a credibilidade dos números fiscais passa a ser questionada. Coisas exatamente desse tipo levaram ao impeachment da ex-presidente Dilma".

Para ele, a situação hoje não é "nada parecida" com a do passado. "Mas houve operações que geraram essa dúvida. Minha sugestão é enfrentar o problema diretamente", diz.

E traz uma dica para o novo presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, que assumirá em janeiro do próximo ano, sucedendo Roberto Campos Neto, o alvo das maiores críticas de Lula em sua terceira gestão.

"Meu conselho é ele seguir tecnicamente as decisões, mesmo enfrentando críticas a curto prazo", afirma. "No médio e longo prazo, com o controle da inflação e o país crescendo mais, vai beneficiar todos, o que tende a reverter todas essas críticas."

Confira a íntegra da conversa.

No começo do livro, o senhor fala bastante do Brasil dos anos 60 e 70. Como o senhor vê o Brasil 60 anos depois?

Na década de 70, o Brasil cresceu muito baseado em financiamento externo. Quando houve a crise do financiamento externo, substituímos isso por expansão monetária, numa situação em que déficit público era coberto por expansão monetária. Como consequência, tivemos hiperinflação. Foram 15 anos de inflação acima de 100% ao ano, o que já mostra uma diferença muito grande para o que vivemos hoje. Há um banco central equipado com instrumentos para combater a inflação e temos metas de inflação consistentes com as de outros países emergentes. Hoje, temos reservas internacionais acima de 300 bilhões de dólares.

A década de 80 é conhecida como a década perdida, mas a década de 2010 a 2020 teve um crescimento médio do PIB ainda menor. Como o senhor vê isso?

O que houve nesse período foi um descontrole fiscal. O governo na época partiu do pressuposto de que não existia limites para a expansão fiscal durante metade da década, quando o Brasil entrou numa crise muito grande com recessão em 2015 e 2016. Antes, a inflação subiu e tinha gerado em 2013 aquelas manifestações de rua. O nível de confiança na economia foi caindo sistematicamente a partir de 2011.

Foi nessa época que o senhor foi ministro da Fazenda (2016 a 2018)...

Quando houve a substituição do governo [de Dilma Rousseff], o presidente [Michel Temer] me convidou para ser ministro da Fazenda. Quando assumi, o PIB brasileiro havia caído 5,2% nos 12 meses anteriores. Foi uma das maiores quedas de PIB na história recente da humanidade para países que não estavam em guerra. Entramos no governo e, com a aprovação e implementação do Teto de Gastos, o país cresceu de ponta a ponta 2,2% em 2017. Ou seja, tivemos um salto de 7,4 pontos percentuais. Foi uma recuperação fortíssima.

O senhor descreve a gestão Lula em duas partes, uma até 2007, com maior controle fiscal, e outra, com maior pressão de gastos, até o final do governo. Como foi isso?

Nos primeiros anos do primeiro mandato de Lula, houve um alinhamento muito grande. De um lado, uma disciplina fiscal e de outro lado, a disciplina monetária. As duas convergiram na mesma direção. Isso gerou uma recuperação da economia que estava em crise em 2002, muito pela expectativa da chegada do próprio Lula.

E o que mudou?

Depois, houve uma mudança de direção quando saiu o ministro Antonio Palocci e entrou o ministro Guido Mantega. Isso foi gradual. A parte fiscal ainda estava com certo controle. Mas gradualmente houve uma expansão fiscal. Por outro lado, o Banco Central manteve a disciplina monetária, compensando a situação.

Essa pressão cresceu e a partir do governo Dilma as "comportas" foram abertas, correto?

A partir de 2011, não só houve uma liberação como a ideia era de que não havia problema fiscal. Ao mesmo tempo, também o BC foi um pouco mais leniente. A inflação subiu um pouco e o BC mudou também de orientação, passando a ser mais leniente com a inflação. Aí, passamos a ter exatamente o contrário do que houve em 2003 a 2007, quando houve alinhamento da política monetária e da política fiscal. De 2011 a 2015, foi na linha da expansão do gasto público e de uma leniência do BC em relação ao controle da inflação. Com isso, o país teve resultados decrescentes.

Em seu livro, o senhor destaca o presidente Lula como um pragmático. Considera que ele tem sido pragmático nas críticas recentes ao Banco Central?

Não [tem sido pragmático]. É importante dizer que, na minha opinião, para o Lula a questão tem muito de um grau de confiança pessoal. Na medida que ele é uma pessoa, como os demais presidentes, sem conhecimento técnico sobre política monetária, há uma questão de confiança. Quando me convidou e estabelecemos as condições, havia confiança. Hoje, é uma questão de o atual presidente do BC ter sido nomeado por Jair Bolsonaro e participado de alguns eventos simbólicos que, para o Lula, são muito significativos. Ele não confia, e tende a ver o assunto dos juros como algo que vai prejudicá-lo e não como algo que vai ajudar o Brasil no controle da inflação.

E o que muda com a entrada de nomeados do atual governo para atuar no BC?

Com a entrada de diretores do BC e o próximo presidente indicados por ele, isso tende a se reverter. Independentemente de a política monetária mudar. Particularmente, acho que o Roberto Campos Neto fez boa gestão.

A gestão atual, então, é técnica na sua avaliação?

Tenho uma visão clara disso porque estive lá oito anos e posso olhar o BC tecnicamente. Não é o caso do presidente da República. Agora, esse problema tende a arrefecer esse porque o presidente e a maioria dos diretores são pessoas nomeadas por ele. Ele ficará tranquilo de que os movimentos não têm finalidade de prejudicá-lo. Tanto que na última subida de juros, quando os diretores nomeados por ele também votaram pela alta, não houve problema.

Qual conselho o senhor daria para Gabriel Galípolo, que assumirá a presidência do Banco Central?

Meu conselho é ele seguir tecnicamente as decisões, mesmo enfrentando críticas a curto prazo. Não falo só de crítica do Presidente da República, mas de entidades empresariais e políticos, por exemplo. Ninguém gosta de juro alto. A minha sugestão é enfrentar isso com tranquilidade. Faz parte do trabalho do BC. No médio e longo prazo, com o controle da inflação e o país crescendo mais, vai beneficiar todos, o que tende a reverter todas essas críticas.

O senhor explora casos como esse no livro...

Tem uma história interessante do Paul Volcker (ex-presidente do FED de 1979 a 1987), quando o FED tinha taxa de juros em nível abaixo do que seria indicado para o país com inflação, como era o caso. Quando entrou, ele tomou medidas duríssimas e subiu brutalmente a taxa base. Chegou a enfrentar algo inédito: passeatas contra ele. No entanto, controlou a inflação, criou as bases para o crescimento dos EUA com taxa de juro baixa e sem inflação e deu estabilidade de mais de 20 anos ao país. Esse é o ponto importante.

Muitos analistas apontam que  crescimento do PIB este ano, estimado em mais de 3%, é decorrente de uma "expansão fiscal" do governo. Como o senhor vê a discussão de um PIB potencial maior e o maior nível de gastos do governo hoje?

Há duas questões. No curto prazo, há uma expansão fiscal, que não é sustentável a longo prazo. Por outro ladro, há efeitos das reformas estruturais, como a trabalhista, lei das estatais e a lei do cadastro positivo, que possibilitou ter produtos como o Pix, muito eficientes, o que aumenta a produtividade e pode influenciar positivamente o PIB potencial.

Como o senhor vê a discussão sobre a possível maquiagem das contas públicas pelo governo?

Houve uma mudança de classificação ou uma mudança de estrutura do gasto. Isso é algo que o governo precisa tomar cuidado. Pode parecer atraente no curto prazo, porque pode gastar mais no curto prazo e não afeta as metas. Mas é a pior solução, porque começa a haver uma situação em que a credibilidade dos números fiscais passa a ser questionada. Coisas desse tipo exatamente levaram ao impeachment da ex-presidente Dilma. Não está nada parecido com o que foi naquela época. Mas houve operações que geraram essa dúvida.

E como o senhor encararia essa situação?

Minha sugestão é enfrentar o problema diretamente. O país de fato precisa de uma certa disciplina fiscal, e as áreas técnicas do governo têm de levar com muita força essa lição do passado, até relativamente próximo. Então, há um início de uma preocupação a esse respeito que, espero, não prospere na medida em que não haja mais operações que suscitem dúvidas do ponto de vista da contabilidade.

Como foi sua experiência como presidente do Bank of Boston, o primeiro brasileiro a assimir tal cargo?

Cheguei ao Bank of Boston após uma gestão bem-sucedida no Brasil. Enfrentei desafios culturais significativos, mas consegui lidar com eles profissionalmente, o que viabilizou fusões importantes e a superação de preconceitos internos.

O senhor traz um caso curioso com a tradicional família Kennedy no livro...

Criei uma divisão para financiamento de mulheres empreendedoras e fui convidado para fazer a abertura de um congresso de mulheres empreendedoras. No final, chegou uma moça, que eu não conhecia, e disse para mim: 'uma coisa não está clara para mim. O senhor é presidente do Bank of Boston, mas me disseram que é brasileiro. Não pode ser.' Eu respondi que era e ela replicou que havia algo errado.

Como assim?

Ela disse que o avô dela, que chegou a ser o maior depositante do banco, nunca pôde ser recebido na diretoria porque era de descendência irlandesa. Apesar de ter sido embaixador dos EUA na Inglaterra. Eu disse que as coisas tinham mudado. Quando ela saiu, perguntei quem era ela. Era Kathleen Kennedy, filha de Bob Kennedy e sobrinha de John F. Kennedy. Procurei nos registros do banco e vi que era verdade. Isso mostra que a questão no Bank of Boston não era só de ser brasileiro ou não. Ser americano, por exemplo, dependia [de qual grupo] também. No momento que lidei com todos esses grupos étnicos dentro do banco, e com sucesso, viabilizei uma fusão importante do banco com o Fleet Bank, que era controlado por descendentes de irlandeses, algo que era impensável.

Por que o senhor deixou o Bank of Boston para entrar no governo brasileiro?

Após a fusão do banco, tive a oportunidade de me aposentar precocemente com um pacote financeiro significativo. Além disso, sempre tive o desejo de contribuir com o Brasil, especialmente em áreas críticas como inflação e dívida externa. Conversei com várias pessoas e com todos os principais candidatos à época, como Ciro Gomes, José Serra, Anthony Garotinho, e Lula.

Foi o presidente Lula quem sugeriu que o senhor se filiasse ao PSDB?

Sim, durante uma conversa, perguntei sobre voltar ao Brasil e participar da vida pública. Ele achou ótima ideia. Perguntei qual partido. Lula disse PSDB. Um dos aliados dele, na época prefeito de Goiânia, o questionou por sugerir que eu entrasse no partido adversário. E ele disse que a minha linha de pensamento era mais alinhada com o PSDB do que com o PT, e que seria o melhor caminho para mim.

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