REVOLUÇÃO FRANCESA: “A execução de Luís XVI”, em 1793. Para Burke, a resposta contra insurgências é a reafirmação do concreto sobre o abstrato / / Gravura de Isidore-Stanislas Helman, que integra o acervo da Biblioteca Nacional da França / Reprodução
Da Redação
Publicado em 16 de dezembro de 2016 às 17h51.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h49.
Edmund Burke: Redescobrindo um Gênio
Autor: Russell Kirk
Editora: Realizações.
576 páginas.
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Joel Pinheiro da Fonseca
Vivemos um inegável renascimento da “direita” no Brasil. Uso aspas porque o termo é impreciso, mesmo que eu o adote ocasionalmente. Há muita coisa diferente incluída no saco da direita, de fascistas puro-sangue até seus arqui-inimigos liberais. O livro Edmund Burke: Redescobrindo um Gênio ajuda a sublinhar esses dois pontos: há direitas e direitas, umas muito diferentes das outras. E, mesmo com a confusão de significados, o rótulo está ganhando força, conquistando inclusive mais espaço no mercado editorial.
A biografia escrita pelo americano Russell Kirk sobre o político e pensador irlandês do século 18 foi publicada originalmente em 1967. No volume brasileiro, temos, além da biografia: um extenso ensaio introdutório escrito por Alex Catharino, o maior especialista brasileiro na obra de Kirk; uma cronologia da vida de Burke; e ainda cinco ensaios sobre a recepção de seu pensamento no Brasil e no mundo.
Burke foi uma figura única. Como membro do Parlamento em Londres, na segunda metade do século 18 (a Irlanda era parte do Reino Unido nessa época), defendeu os direitos de povos e indivíduos em situação desfavorável. Entendeu como justa a reivindicação dos americanos por mais autonomia e direito de representação no Parlamento. Se o governo inglês tivesse seguido o caminho conciliatório de Burke, a perda da colônia possivelmente teria sido evitada naquele momento.
Na Irlanda, Burke – que era anglicano, embora filho de mãe católica – defendeu os direitos políticos da maioria católica da população, injustamente mantida sem diversos direitos básicos, como os de poder participar da política e ter propriedades.
Por fim, sua causa mais longa foi a tentativa de impeachment contra o representante da Companhia das Índias Orientais, Warren Hastings. Ele era o governador britânico da Índia, e fazia uso arbitrário da força contra nativos e líderes locais. O caso é mais complexo do que Kirk descreve – ele próprio cita que o processo foi controverso, talvez com exageros e motivos pessoais por trás dos acusadores, sem entrar em detalhes. Mas o ímpeto geral é, mais uma vez, a defesa do direito natural dos povos por parte de Burke.
Ele fazia isso por dois motivos. Primeiro porque, mesmo fora da ordem legal constituída – como era o caso do poder inglês na Índia –, há certas regras universais de conduta que todos os homens devem seguir, sob a pena de sacrificar sua própria humanidade. Segundo porque esse tipo de conduta, ao oprimir injustamente uma população, poderia produzir, da parte dos oprimidos, uma reação contrária extremamente violenta. Foi esse tipo de reação que Burke viu na Revolução Francesa, e a reação dele ao jacobinismo consagrou-o como pai de uma tradição política importante: o conservadorismo.
Por trás de todo o pensamento de Burke, havia a preferência do concreto ao abstrato, de construir sobre o que a história já nos legou em vez de erguer algo novo do zero. Sim, as instituições humanas são imperfeitas, e o papel do político é melhorá-las, reformá-las, jamais erradicá-las. Sem os costumes, laços e instituições tradicionais, abre-se espaço para todo tipo de violência e uso arbitrário do poder, o maior inimigo da civilização na visão de Burke.
Os Direitos Universais do Homem que os revolucionários brandiam eram, para Burke, uma aberração. O direito abstrato, sem limites, é uma quimera da imaginação humana, que pode justificar crimes terríveis. E, de fato, os revolucionários não só estavam cortando cabeças dentro da França como se diziam portadores de uma mensagem de salvação destinada a todos os povos, se preciso fosse por meio da violência. Por esse motivo, confrontado com uma nova religião laica militante, Burke defendeu o uso de força militar inglesa para esmagar a revolução.
O conservador contemporâneo
Pulando quase dois séculos de história e cruzando o Atlântico, chegamos nos Estados Unidos de Russell Kirk, autor importante do conservadorismo americano. Homem mais religioso (no caso, católico) e mais pessimista que seu biografado, Kirk via em seu mundo o mesmo exato fenômeno de “doutrina armada” que Burke vira na França revolucionária. Dessa vez, era o perigo vermelho, os bolcheviques e seus descendentes na União Soviética, que também desconheciam fronteiras nacionais em seu sonho de trazer o comunismo para todos os povos.
Hoje, um paralelo poderia ser traçado com o islã militante – seja na versão xiita do Irã ou sunita do Estado Islâmico –, embora nenhum dos dois tenha a força necessária para fazer frente às grandes potências do mundo. Ao mesmo tempo, contudo, o desejo de erradicar o passado para construir um futuro puramente justo continua forte em outros âmbitos. A promessa da redenção política e do acerto de contas por uma justiça implacável continuam a animar causas como movimentos racialistas, de gênero ou de distribuição maciça de renda.
Como a direita tem reagido? Em geral, com puro reacionarismo, com sonhos igualmente perigosos de uso da força, de ditadura militar, de esmagar sua oposição. Uma postura mais inteligente pode ser aprendida com Burke e com os adeptos contemporâneos desse bom conservadorismo. É preciso olhar para propostas concretas que, ao construir sobre o que já existe e ao se dispor a fazer acordos que não deixem ninguém completamente desamparado, sejam capazes de produzir um cenário relativamente melhor. A doutrina liberal incapaz de olhar para as circunstâncias, o sonho com um passado idílico de certos conservadorismo e o recurso à força e à arbitrariedade de um “mito” são hábitos e formas de pensar que nada têm a ver com a direita herdeira de Burke. Talvez seja hora de lhe dar mais atenção.