Economia

Brasileiro desempregado sem formação não consegue nem trabalhos básicos

No início do ano, por exemplo, a Atento, ofereceu 1,2 mil vagas no Mutirão do Emprego, mas dos 600 interessados, só conseguiu contratar sete

Desemprego: feira oferecida em SP terminou com metade das vagas em aberto por falta de qualificação dos candidatos (Paulo Whitaker/Reuters)

Desemprego: feira oferecida em SP terminou com metade das vagas em aberto por falta de qualificação dos candidatos (Paulo Whitaker/Reuters)

EC

Estadão Conteúdo

Publicado em 2 de junho de 2019 às 13h54.

São Paulo — No início deste ano, a Atento, empresa de telemarketing e a maior empregadora privada do país, ofereceu 1,2 mil vagas no Mutirão do Emprego, promovido pelo Sindicato dos Comerciários de São Paulo. Com 600 interessados, só conseguiu contratar 7 operadores de telemarketing — menos de 1% do que precisava.

No mesmo evento, o Grupo Pão de Açúcar abriu 2 mil postos, aprovou 700 candidatos, mas, até agora, apenas 32 estão trabalhando, segundo os organizadores do evento.

Diante da estagnação da economia, do desemprego em alta e do avanço da tecnologia, os casos acima são um retrato nítido da dificuldade que o trabalhador sem qualificação tem enfrentado para voltar ao mercado.

Nos últimos dois anos, 60% das 11,8 mil vagas ofertadas nos mutirões do emprego, que reuniram grandes empresas, não foram preenchidas. Dificuldade de se expressar, de fazer contas, falta de conhecimentos básicos em informática e inglês e poucos anos de estudo são obstáculos às contratações.

De acordo com o presidente do Sindicato e da União Geral do Trabalhadores (UGT), Ricardo Patah, no último mutirão foram ofertadas cerca de 2 mil vagas para caixa de supermercado, com salário perto de R$ 1.100.

Metade delas ficou em aberto por falta de qualificação dos candidatos. Operador de caixa e de telemarketing são geralmente a porta de entrada para o mercado de trabalho, especialmente para os mais jovens.

Segundo empresas de recrutamento, a recolocação tende a ser mais difícil para quem tem até o ensino fundamental, menos de 20 e mais de 45 anos e está há mais de um ano fora do mercado.

Entre os 13,4 milhões de desempregados no primeiro trimestre deste ano, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), 635 mil são considerados de difícil recolocação pelos recrutadores, nas contas do economista Cosmo Donato, da LCA. É o dobro do registrado no mesmo período de 2014, antes da recessão.

O abismo entre a qualidade da mão de obra desempregada e o que as empresas procuram não deve se resolver nem mesmo com a retomada da economia, prevê o economista-chefe da Confederação Nacional do Comércio (CNC), Fabio Bentes.

Ele estima que dois, em cada dez desocupados, devem ficar fora do mercado na próxima década por falta de qualificação. Isso significa que a massa de trabalhadores sem chances de se recolocar pode saltar dos atuais 635 mil para 1,4 milhão, em dez anos.

De acordo com as estimativas de Bentes, se a economia crescer em média 2,5% ao ano até 2030, a procura por trabalhadores não deve ser suficiente para recuperar os 8,8 milhões de empregos destruídos pela maior recessão da história.

As projeções foram feitas, a pedido do Estado, levando em conta dados da Pnad e projeções do Boletim Focus do Banco Central.

"Não vai ter (crescimento do) PIB suficiente para incorporar essa massa de desempregados com baixa qualificação", afirma. Em 2014, antes da recessão, o mercado de trabalho estava tão aquecido que até profissionais com pouca qualificação eram facilmente absorvidos. Na crise, o quadro se inverteu.

Para Hélio Zylberstajn, professor sênior da FEA/USP e coordenador do projeto Salariômetro da Fipe, os trabalhadores sem preparo podem ter destino diferente, dependendo de qual área leve adiante a retomada da economia.

"Essa proporção de dois em cada dez poderá ser menor se o modelo for puxado pelo investimento em infraestrutura, que incorpora trabalhadores na construção civil de baixa qualificação", diz.

Treinamento

A conhecida baixa produtividade do trabalhador brasileiro só vai ser resolvida, segundo Bentes, da CNC, com treinamento, o que depende de investimentos.

No setor público, diante da pressão por cortes e contingenciamento de gastos, será difícil que o orçamento cresça nos próximos anos na velocidade necessária para suprir essa necessidade de qualificação dos trabalhadores.

Por iniciativa própria, só uma parcela muito pequena deles consegue bancar os estudos. "A maioria vende o almoço para comprar o jantar", afirma.

Segundo o economista, a iniciativa privada é a ponte principal para melhorar a produtividade. Ele adverte, no entanto, que existe um risco de o trabalhador desqualificado ser substituído por uma máquina.

"Quando a economia voltar a crescer e o investimento retornar, o empresário vai se perguntar se faz sentido contratar, por exemplo, um caixa de supermercado com baixa produtividade ou se é mais barato comprar uma caixa registradora automática que faça esse serviço a um custo menor e sem encargos trabalhistas", afirma.

Tecnologia deixa empregador mais seletivo na hora de contratar

Foi-se o tempo que máquina registradora do supermercado fazia só as quatro operações matemáticas. Hoje, na prática, ela é um computador que tem conexão direta com cerca de 40 mil itens do estoque e é capaz de determinar, ao fim do dia, quanto foi vendido de cada produto.

"O operador de caixa tem de ter 2.º grau e conhecimentos básicos de informática. A exigência é grande para uma remuneração na faixa de R$ 1,1 mil", diz o presidente do Sindicato dos Comerciários e da União Geral dos Trabalhadores, Ricardo Patah.

De fato, com a grande oferta de mão de obra e a evolução tecnológica, as exigências das empresas na hora de contratar têm aumentado.

Nos últimos 12 meses até março, 12% dos contratados para a função de vendedor de loja estavam cursando faculdade ou tinha já concluído o curso superior e 76% tinham ensino médio completo, aponta levantamento feito com base nas informações do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados pelo professor sênior da FEA-USP Hélio Zylberstajn. O quadro se repete para balconista de farmácia, outra ocupação que, teoricamente, não exigiria tanta qualificação, já que o salário médio é de R$ 1,3 mil.

Nesse caso, 83,2% dos admitidos nos últimos 12 meses até março têm ensino médio completo e quase 10% estão cursando ou concluíram a universidade.

Deslocamento

"Quem tem pouca escolaridade neste momento está tendo muita dificuldade de encontrar emprego porque parte das vagas que poderia ocupar está sendo preenchida por pessoas que têm formação maior do que a necessária", afirma Zylberstajn. Ele diz que esse movimento de deslocamento da mão de obra ocorre em períodos de recessão prolongada.

Para Lucila Sciotti, superintendente de operações do Serviço Nacional do Comércio (Senac) São Paulo, é preciso haver esforço maior, por parte do poder público, de aproximar a capacitação que é oferecida aos estudantes das necessidades das empresas. "Muitas vezes, a formação dos profissionais é deficitária. Alguns alunos chegam até nós sem saber fazer contas simples ou têm dificuldade em interpretar textos", diz. "É preciso direcionar as políticas públicas para resolver esses gargalos."

Diante da falta de qualificação barrando as contrações, Patah diz que no último Mutirão do Emprego promovido pelo sindicato foram ofertados também cursos gratuitos de qualificação em parceria com Senai, Senac e Centro Paula Souza. Ao todo foram cerca de 1, 3 mil vagas.

Das mil vagas oferecidas pelo Centro Paula Souza, 450 pessoas se matricularam nos cursos de estoquista, assistente administrativo, confeiteiro, cuidador de idosos, maquiagem, recepção e atendimento e vitrinista. "Pela primeira vez fizemos mutirão com capacitação: mais do que aumento salarial, o importante hoje é qualificar o trabalhador", afirma.

No próximo evento programado para julho, Patah diz que devem ser oferecidas, no mínimo, 10 mil vagas. A intenção é atender também aos trabalhadores em situação vulnerável, com vagas para ocupações que exigem menos qualificação, como na área de limpeza, por exemplo.

Frustração

Após horas de espera para deixar um currículo no último mutirão do emprego, no qual uma fila interminável serpenteava o Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo, os candidatos a uma vaga voltaram para casa frustrados. Eles não sabem qual foi o real motivo para terem sido rejeitados.

"É o currículo ou alguma coisa que está acontecendo com a minha vida. Até na igreja já fui", diz Renata Cristina Gama, 35 anos e mãe de dois filhos.

Desempregada há quatro anos, ela não terminou a faculdade de pedagogia e o seu último emprego foi numa escola. No mutirão, deixou currículos em cinco grandes empresas que estavam no evento. Chegou a participar de minientrevistas, mas o processo seletivo não avançou.

No momento, faz um curso gratuito de auxiliar administrativo, mas não acha que vai conseguir alguma coisa por conta disso.

Já a ascensorista Rosemeire Soares Ayres, de 41 anos, sem emprego há mais de um ano, acredita que quanto mais qualificação, maior a chance de recolocação. Com o segundo grau completo, hoje faz curso de atendimento ao público. Mas coleciona pelo menos sete cursos rápidos.

Deixou vários currículos no mutirão e não foi chamada. "Acho que é por causa dessa crise mesmo. Abre uma vaga e vêm mil pessoas para concorrer."

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