Economia

Brasil é mais desigual do que se imaginava, diz pesquisador

“A forma como o Estado trata os ricos é mais importante do que como trata os pobres”, diz o especialista em desigualdade Marcelo Medeiros

Marcelo Medeiros, pesquisador do Ipea e professor da UnB, é especialista em desigualdade (João Dalvino/Ipea)

Marcelo Medeiros, pesquisador do Ipea e professor da UnB, é especialista em desigualdade (João Dalvino/Ipea)

João Pedro Caleiro

João Pedro Caleiro

Publicado em 11 de março de 2016 às 07h00.

Última atualização em 11 de maio de 2020 às 18h48.

São Paulo - O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo - mas ninguém sabe exatamente o quão desigual ele é.

Nos últimos anos, a queda da pobreza trouxe ganhos enormes para a base da pirâmide (e que já estão sendo revertidos). Mas no caso da distribuição de renda, o buraco é mais em cima.

"O 1% mais rico tem cerca de um quarto de toda a renda do país e uma capacidade de alavancar a desigualdade muito maior do que a de qualquer pessoa na parte de baixo", diz Marcelo Medeiros.

Professor na UnB (Universidade de Brasília) e pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), Medeiros é um dos maiores especialistas sobre o tema no país.

Ele conversou recentemente com EXAME.com sobre a trajetória da desigualdade no Brasil e sua relação com educação, família e impostos. Veja a seguir:

EXAME.com – O que os estudos mostram sobre o comportamento da desigualdade na história do Brasil?

Medeiros – Eles mostram que a desigualdade subiu entre os anos 60 e 70, no começo da ditadura. Não é que ela tentou deliberadamente fazer isso, e sim que tomou ações que tiveram esse resultado, antes mesmo do milagre econômico.

No começo dos anos 80 a desigualdade parece oscilante, mas como a hiperinflação mexe muito com valores, não se sabe muito bem.

Na transição entre 1993 e 1995, até antes do Plano Real, a desigualdade começa a mostrar pequenos sinais de queda, primeiro no mercado de trabalho.

Entre 1999 e 2011 começa uma queda mais generalizada da desigualdade e estudos recentes sugerem que um dos motores para isso foram os aumentos sistemáticos do salário mínimo desde o início dos anos 90.

Só que a PNAD reconhecidamente subestima as rendas no topo, e portanto, a própria desigualdade.

EXAME.com – Por que?

Medeiros – Porque ela usa sorteio e uma amostra que nem sempre é perfeita. A segunda razão é que a PNAD não capta todas as rendas e é particularmente ruim em captar rendimentos de capital como aplicações financeiras e ganhos com imóveis, por exemplo. É algo que a gente já sabia há muito tempo.

A vantagem dos dados tributários é que eles captam melhor a renda dos ricos e a desvantagem é que não capturam tão bem a base, porque os mais pobres não precisam declarar imposto de renda. Uma estratégia é pegar o IR para a parte de cima e encaixar com a PNAD de baixo.

O que os estudos mais recentes baseados em dados tributários mostram é que a queda da desigualdade não ocorreu, mas houve melhoras indiscutíveis no nível de pobreza e desigualdade dos 99% mais pobres.

EXAME.com – Qual é o papel da educação nisso?

Medeiros – A educação tem um papel importante na colocação que as pessoas tem na sociedade, mas o que mais responde por ela não é a educação básica, é a de nível superior e de elite; médicos, engenheiros, advogados.

Se formos usar a educação para reduzir desigualdade, não vai ser suficiente investir em ensino básico e médio. Teremos que fazer uma expansão muito maior [do superior], o que vai exigir políticas ambiciosas e muito dinheiro. Educação de qualidade é caro.

Na minha opinião, o país deve enfrentar isso não só pela desigualdade mas porque educação é um dos elementos da competição international. O Brasil deve se preparar para fazer alguns sacrifícios geracionais e grandes investimentos no seu sistema educacional.

Isso não é garantia de redução de desigualdade, é condição necessária.

EXAME.com – E o papel da família?

Medeiros – Uma parte importante do futuro de uma pessoa é determinado por sua família de origem: as mais ricas colocam seus filhos nas melhores escolas e permitem que eles consigam posições mais vantajosas.

Elas também facilitam sua entrada no mercado de trabalho e as liberam de certas responsabilidades - como cuidar dos pais - que impedem muita gente de aceitar um emprego mais arriscado.

Também tem o casamento: as pessoas se casam com pessoas parecidas com elas. É recorrente os mais ricos casarem com mais ricos e os mais pobres com mais pobres, um fenômeno mundial e que tende a replicar desigualdades pré-existentes.

Mas existe também outra coisa importante: transmitir herança é transmitir riqueza e vantagens para uma geração seguinte. É diferente de uma pessoa que é rica pelo próprio trabalho e mérito.

A herança pode estar transmitindo recursos para pessoas que não são as mais trabalhadoras, eficientes e criadoras, e por isso há um debate mundial sobre tributar herança para estimular a economia.

EXAME.com – Estudos já identificaram que os impostos sobre renda amenizam a desigualdade enquanto os indiretos a estimulam, já que seu peso sobre os mais pobres é proporcionalmente maior. Como está o Brasil nesse sentido?

Medeiros – A discussão vai além disso. Se você precisa ter impostos, deve buscar os mais eficientes: sobre propriedade, herança e renda. É a tributação que menos prejudica investimentos e menos impacta a economia.

Pagar 100 reais de imposto é pouco para uma pessoa rica e muito para uma pessoa pobre, então é óbvio que o imposto proporcional é ruim e ineficiente para a economia como um todo.

O imposto de renda é progressivo e os impostos sobre produção e consumo não são, então seria melhor para o país ter uma tributação mais sólida no que se refere a renda, herança e propriedade.

O modelo americano é fundamentalmente baseado nisso: a gente usa eles como exemplo para tanta coisa, uma que devemos levar em conta é essa.

Mais um exemplo: hoje, uma parte importante da carga tributária é a contribuição previdenciária para manter um regime previdenciário, que também é uma parte importante do gasto social total.

Esse tributo não é progressivo: quem ganha pouco paga a mesma proporção de quem ganha muito. O ideal é que a contribuição previdenciária também seguisse o modelo progressivo, e que no limite, a previdência fosse financiada por um sistema como o do imposto de renda, ou por ele próprio.

EXAME.com – Uma coisa que você diz é que “a forma como o Estado trata os ricos é mais importante do que como trata os pobres”. O que você quer dizer com isso?

Medeiros – Porque eles detém uma quantidade gigantesca de recursos: o 1% mais rico tem cerca de um quarto de toda a renda do país e uma capacidade de alavancar a desigualdade muito maior do que a de qualquer pessoa na parte de baixo.

É quase uma aritmética simples: importa muito mais a desigualdade entre esses ricos e o resto da população do que entre os pobres e quem está perto da pobreza.

EXAME.com – Existe algum país que sirva de exemplo de combate à desigualdade?

Medeiros – Há países que tem conseguido reduzir a desigualdade mas estão pagando caro por isso, e há países cujas decisões fizeram a desigualdade subir e que também estão pagando caro por isso.

Não dá para usar nenhum país como exemplo porque a desigualdade é só uma peça num quebra-cabeças mais complicado.

EXAME.com – Muitos dizem que a tecnologia é um dos motores do aumento da desigualdade. Você concorda?

Medeiros – Não existe evidência clara disso para uma série de países, incluindo o Brasil, onde houve queda sistemática da desigualdade depois nos anos 50, talvez a fase de maior crescimento que o país já teve.

Essa trajetória foi completamente revertida em 1964, início da ditadura, quando houve aumento acelerado de desigualdade em período de recessão.

Além disso, nosso grupo dos ricos não é composto de pessoas que fazem inovação tecnológica e sim de categorias com pouca contribuição para isso, como advogados e economistas.

EXAME.com – Existe algum indício de qual será o efeito da crise atual sobre a desigualdade?

Medeiros – Prever o futuro da desigualdade é extremamente difícil porque depende de como os ricos são afetados, e ter uma recessão não significa necessariamente que isso vai acontecer.

Na década de 30, a economia ficou mal mas o governo manteve o preço do café para satisfazer as elites e a desigualdade estava em alta. Nos anos 50, a economia ia bem e a desigualdade estava em baixa.

No momento, não está claro o que vai acontecer e nem o perfil do ajuste, então é difícil fazer qualquer previsão.

Acompanhe tudo sobre:Carga tributáriaDesigualdade socialDistribuição de rendaFamíliaIpea

Mais de Economia

Presidente do Banco Central: fim da jornada 6x1 prejudica trabalhador e aumenta informalidade

Ministro do Trabalho defende fim da jornada 6x1 e diz que governo 'tem simpatia' pela proposta

Queda estrutural de juros depende de ‘choques positivos’ na política fiscal, afirma Campos Neto

Redução da jornada de trabalho para 4x3 pode custar R$ 115 bilhões ao ano à indústria, diz estudo