Economia

Auxílio emergencial reduziu pobreza durante pandemia — mas vai custar caro

Cerca de 66 milhões de pessoas, ou 30% da população, receberam R$ 600 por mês de abril a agosto sob o programa social mais ambicioso já realizado no Brasil

Voluntários distribuem caixas de alimentos e materiais de higiene a moradores da favela Vale das Virtudes, em São Paulo, em 12 de junho de 2020. (Victor Moriyama/Bloomberg)

Voluntários distribuem caixas de alimentos e materiais de higiene a moradores da favela Vale das Virtudes, em São Paulo, em 12 de junho de 2020. (Victor Moriyama/Bloomberg)

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Bloomberg

Publicado em 3 de setembro de 2020 às 06h00.

O Brasil, que está entre os países com maior número de mortes por coronavírus, respondeu à crise distribuindo tanto dinheiro diretamente aos cidadãos que a pobreza e a desigualdade se aproximam de mínimas históricas.

Cerca de 66 milhões de pessoas, ou 30% da população, receberam R$ 600 por mês de abril a agosto sob o programa social mais ambicioso já realizado no Brasil, marcando uma grande mudança de postura do presidente Jair Bolsonaro que, após criticar a transferência de renda e minimizar a gravidade da pandemia, agora aumenta sua popularidade.

Os números do governo ainda não foram divulgados, mas dados da Fundação Getulio Vargas mostram que a proporção de pessoas com renda abaixo de US$ 1,9 por dia caiu para 3,3% em junho em relação a 8% no ano passado. A parcela da população abaixo da linha da pobreza diminuiu de 25,6% para 21,7% no período. Ambos os indicadores são os mais baixos em 16 anos.

Daniel Duque, economista que coordenou na pesquisa da FGV, disse que, de fato, a pobreza caiu para o menor nível desde que a coleta de dados começou há 40 anos, mas uma mudança nos critérios em 2004 torna a comparação direta antes disso mais complicada. Ele acrescentou que medições ainda não publicadas de julho e agosto mostram que a desigualdade calculada pelo chamado coeficiente de Gini caiu abaixo de 0,5 pela primeira vez.

Em outras palavras, apesar de a Covid-19 ter matado cerca de 122 mil brasileiros, paradoxalmente reduziu a pobreza e a desigualdade, pelo menos no curto prazo. Também colocou o programa social do governo no centro do debate político, como há uma década com o Bolsa Família, que tirou milhões da pobreza. A questão irá repercutir nas eleições municipais de novembro, um ensaio para a corrida presidencial em 2022.

Para Duque, é como se, de repente, o Brasil tivesse criado um grande programa de renda mínima. Ele acredita que não será possível eliminar o benefício no curto prazo: “A população tende a pressionar por mais transferências após uma experiência como essa, e não se pode impor à sociedade uma queda tão brusca da renda com o fim do auxílio sem uma transição”.

Mas o governo já iniciou a desaceleração. Na terça-feira, Bolsonaro anunciou que o auxílio emergencial será reduzido pela metade no restante do ano. E, embora tenha prometido tornar alguma forma de benefício permanente, como o já batizado programa Renda Brasil, não indicou como irá pagar por isso.

Economistas dizem que a abordagem é insustentável. O Brasil deve registrar o maior déficit primário de todos os tempos, de mais de 11% do PIB neste ano, e “o desafio é como desfazer isso”, questiona Christopher Garman, diretor-gerente para as Américas do Eurasia Group. “Não tem almoço grátis.”

Meta do resultado primário

Buraco no orçamento: Brasil enfrenta déficit primário recorde em função dos gastos para conter pandemia (Bloomberg/Bloomberg)

Os mercados concordam. Na semana passada, os preços dos ativos brasileiros despencaram depois que Bolsonaro sugeriu que poderia “furar” o teto de gastos para financiar benefícios permanentes, rejeitando proposta do Ministério da Economia de acabar com o pagamento do abono salarial, desviando esses recursos para viabilizar o Renda Brasil.

Isso se deve ao preço astronômico do programa coronavoucher, estimado em R$ 50 bilhões por mês até agosto. O custo em cinco meses ultrapassou o total gasto com o Bolsa Família em oito anos. O programa beneficiou cerca de 14 milhões de famílias neste ano.

O coronavoucher, que responde por quase metade do pacote de recuperação de Bolsonaro, aumentou a popularidade do presidente, especialmente entre os pobres.

José Carlos Alves, de 56 anos, que vende souvenirs nos arredores de Brasília, diz que os R$ 600 por mês mudaram sua postura política, pois agora enfrenta mais meses sem turistas ou vendas. Antes leal ao Partido dos Trabalhadores, Alves diz que a ajuda “mostra que Bolsonaro se preocupa e agora tem meu voto em 2022”.

Monica de Bolle, pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics, que assessorou os parlamentares sobre a legislação para ajuda emergencial, diz que este é um fenômeno mais amplo: “Bolsonaro percebeu o óbvio: o Brasil é um país pobre com muitos pobres e, se você der dinheiro a eles, conseguirá votos.”

O estímulo do governo, que representa cerca de 7% do PIB, é amplamente creditado por evitar um resultado mais sombrio, embora a economia deva registrar queda acima de 5% neste ano - desempenho menos desastroso do que o do México e da Argentina, cujas economias podem encolher cerca de 10% cada.

Mesmo enquanto o vírus espalha fome dos Estados Unidos ao deserto do Saara, muitos governos enfrentam o mesmo desafio: como reduzir os gastos emergenciais da pandemia sem sufocar a frágil recuperação econômica.

O coronavoucher levanta questões sobre a melhor forma de lidar com a crescente vulnerabilidade econômica, se Bolsonaro aposta na transferência de renda para permanecer no cargo e se a oposição aos benefícios para derrotá-lo é viável.

“As pessoas têm o direito de se preocupar com as inclinações populistas de Bolsonaro e sua capacidade de extrapolar tudo se quiser”, disse De Bolle. “Não devem pedir um ajuste fiscal agora. O Brasil tem uma epidemia totalmente descontrolada com muita gente que, se não tivesse recebido um programa emergencial de renda básica, provavelmente teria morrido.”

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