Fernando Haddad: prevalece a crença de que diante do abismo o Brasil encontra meios para empurrar a conta e a crise para frente (Hollie Adams/Getty Images)
Colunista
Publicado em 10 de junho de 2024 às 15h02.
Última atualização em 10 de junho de 2024 às 15h03.
O preço do dólar superou R$ 5,35. Na verdade, ele anda caríssimo e com tendência a encarecer há um bom tempo em quase todos os países. Porém, a força internacional da moeda americana explica apenas parte de sua rápida valorização recente contra o real. O que está acontecendo?
As causas externas e domésticas dos movimentos cambiais podem ser separadas comparando-se as oscilações do dólar no Brasil com suas variações em países cujas moedas reagem de forma parecida ao noticiário internacional como, por exemplo, Chile, México ou África do Sul.
É possível misturar uma cesta de taxas de câmbio semelhantes para produzir um “real artificial” que, na média, reproduz os movimentos do “real verdadeiro”. Desvios do verdadeiro em relação ao artificial ocorrem ao sabor de novidades que influenciam apenas as perspectivas da economia brasileira.
De modo geral, observa-se que os dois reais andaram juntos desde as eleições de 2022 até o primeiro trimestre de 2023. A partir de então, o real verdadeiro ganhou força e passou a registrar uma valorização de cerca de 10 centavos em relação ao teórico. O real estava “forte”.
Esse período favorável teve início com o anúncio do novo arcabouço fiscal. Ainda que distante do ideal do ponto de vista do controle da dívida, o arranjo foi considerado uma alternativa politicamente possível, suficiente para tirar a agenda fiscal do foco imediato.
Durante essa fase, o ministro Haddad se consolidou como fiador da prudência econômica.
A lua de mel se estendeu até o início de março passado. Nos últimos três meses, com as idas e vindas que caracterizam os movimentos cambiais, o prêmio do real verdadeiro sobre o artificial gradualmente se desfez de modo que, atualmente, o dólar custa cerca de 25 centavos mais do que deveria.
Se não tivesse havido mudança no padrão de comportamento que vigorou de outubro de 2022 a março de 2023 e o real continuasse oscilando no mercado internacional com prêmio de R$ 0,10, o dólar deveria custar cerca de R$ 5,00. A alta de R$ 0,35 em relação ao contrafactual deve-se a fatores domésticos.
A perda de brilho é diretamente proporcional à depreciação do ministro da fazenda como contraponto ao receituário “desenvolvimentista” que orienta o pensamento econômico que faz mais sucesso em Brasília, junto ao público e parte da crítica – a ideia de que o progresso pode ser promovido por políticas de estímulo à demanda e de incentivos e proteção a setores “estratégicos” como se não existissem restrições de capacidade, orçamentárias e de poupança.
Essa é a doutrina que provocou a recessão de 2014-16, uma das mais severas da história do Brasil. As contraindicações estão amplamente documentadas – o que não significa que o Estado não tenha papel no desenvolvimento. No entanto, políticas gestadas com base nessa visão lubrificam melhor as engrenagens do populismo, do patrimonialismo e da corrupção – por isso, são as preferidas de “progressistas” e “conservadores” com raríssimas exceções.
Como os interesses organizados em torno do Estado dilatado, ineficaz e ineficiente retardam o avanço de reformas estruturais que poderiam impulsionar a produtividade, não há grande esperança com relação ao crescimento de longo prazo, como se pode inferir das projeções consensuais.
Sendo assim, os surtos de relativo otimismo ocorrem quando a conjuntura permite empurrar os inevitáveis e dolorosos ajustes por mais tempo, mantendo-se a estabilidade mesmo que aos trancos e barrancos, tendo em vista a bomba relógio fiscal. Nessas fases de otimismo, prevalece o conformismo até que uma gota d’água (às vezes inocente) entorna o caldo. Não se pode dizer, por exemplo, que a revisão das metas fiscais tenha sido algo totalmente inesperado. As mudanças também não foram relevantes em si. O problema é obviamente o conjunto da obra.
Explicitou-se com o anúncio o que já era sabido por todos. A falta de compromisso fiscal e o norte “desenvolvimentista” se tornaram conhecimento comum e, na esteira da depreciação do ministro da fazenda como fiador da temperança, o real e o país também se desvalorizaram.
Além do câmbio, outros termômetros acusam a deterioração do cenário econômico como, por exemplo, taxas de juros e expectativas de inflação de longo prazo. Não é uma sangria desatada. Os movimentos são relativamente contidos porque o ambiente internacional, ainda que envolto por incertezas, segue favorável e, de resto, prevalece a crença de que diante do abismo o Brasil encontra meios para empurrar a conta e a crise para frente – e antes da inflação criar raízes, o país cresce mais.
O dólar encontra-se caro por motivos externos e está encarecendo por motivos domésticos. Como não parece haver razão para esperar mudanças expressivas na orientação “desenvolvimentista” da política econômica doméstica, o cenário nos próximos meses dependerá mais do que virá do ambiente internacional, especificamente dos rumos da política monetária americana.
O lado cheio do copo é dado pela expectativa de que o dólar começará a se enfraquecer contra a maioria das moedas quando (e se) a inflação der trégua nos EUA. Se for assim, haverá uma âncora externa que sustentará a estabilidade doméstica, gerando mais um surto de otimismo complacente no Brasil.
O lado vazio está no fato de que o cenário de retorno à normalidade do dólar evidentemente não é certo. Se não houver um “pouso suave” da economia americana, a onda de aversão ao risco pegará o Brasil enfraquecido. Aí sim veremos o dólar caro para valer.