HOLANDA: questões sociais e culturais do país, de onde vem o autor Rutger Bregman, esbarram na ideia de utopia realista do jornalista / Mark Dadswell/Getty Images
Da Redação
Publicado em 18 de março de 2017 às 08h01.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h13.
Utopia for Realists: How We Can Build the Ideal World
Editora: Little, Brown and Company
Autor: Rutger Bregman. Páginas: 336
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Joel Pinheiro da Fonseca
A Holanda se safou de uma boa nesta semana, ao reeleger o primeiro-ministro conservador, Mark Rutte. Pró-mercado na economia, com uma sólida defesa do legado do Iluminismo nos valores, é o melhor que a Europa tem a oferecer no momento. O pior dos mundos seria embarcar na aventura populista representada por Geert Wilders, com sua agenda nacionalista, anti-imigração e anti-islâmica.
Dar ao político “estilo Trump” uma vitória agora no continente europeu, além do dano em si, daria uma perigosa impressão de onda irrefreável que fortaleceria muito as chances do populismo na França e por todo o continente. Ainda assim, é preciso dizer que a vitória de de Mark Rutte está longe de ser inspiradora, de apontar para novos caminhos ou para um sonho mobilizador.
Para esse tipo de visão de sociedade, temos que nos voltar da política para os livros. E é de um holandês a mais recente e provocadora tentativa de pintar uma utopia. Uma utopia, garante o autor, realista. Estou falando de Utopia for Realists: How We Can Build the Ideal World (“Utopia para Realistas: como podemos construir um mundo ideal”), de Rutger Bregman.
Bregman é um jovem jornalista que poderia ser tranquilamente classificado no campo da esquerda europeia. Valores cosmopolitas, desejo de erradicar a pobreza e uma concepção igualitária de mundo, que recusa colocar os próprios interesses – ou os de uma nação específica – acima dos de qualquer outro. A grande diferença entre ele o restante da esquerda europeia jovem atual é que Bregman superou o preconceito com o funcionamento do mercado. Foi graças ao capitalismo global que a China tirou 700 milhões de habitantes da miséria. Nada a ver com a revolução maoísta. Bregman carece, portanto, de qualquer tentação de planificar ou microgerenciar a economia. As mudanças – bastante radicais – que ele propõe não visam a alterar esse entendimento, e na medida do possível o incorporam. Vamos a elas.
O livro dá três propostas para transformar as sociedades ricas (nós, brasileiros, ainda temos que chegar lá) em verdadeiras utopias: renda básica universal, jornada de trabalho de 15 horas semanais e fronteiras abertas. A primeira proposta é nossa velha conhecida dos discursos do ex-Senador Eduardo Suplicy. A ideia é interessante como um substituto do Estado de bem-estar e há alguma evidência em que dar dinheiro de graça às pessoas reduz o custo dela para a sociedade. Bregman cita o caso de mendigos na Inglaterra. Com menos necessidade de tribunais e serviços assistenciais, o receptor da renda mínima é capaz de resolver sua vida.
O problema é que, fora experimentos limitados, nenhum país jamais implementou essa proposta, que seria, para qualquer valor que possa garantir uma vida digna (Bregman fala em cerca de 12 mil dólares por ano), extremamente caro, exigindo a total reformulação do sistema tributário. Ele cita o exemplo do ex-presidente Richard Nixon, que quase o fez nos Estados Unidos, mas acabou sendo dissuadido. Hoje em dia, o estado do Alasca tem essa política; talvez o único jeito de convencer americanos de morarem lá. Não está claro qual seria o efeito de uma medida dessas sobre a cultura de um povo. Não tenho dúvidas de que holandeses de hoje em dia continuariam industriosos mesmo recebendo dinheiro gratuito. Mas e os filhos deles, nascidos sob a expectativa de ter todas as suas necessidades já cobertas, sem qualquer contrapartida? E para povos cuja cultura valoriza justamente a pessoa que consegue tirar mais para si contribuindo o mínimo possível? Não vou citar nomes…
A renda universal é uma proposta radical, mas ainda dentro do concebível. A jornada de 15 horas, confesso, me foi mais difícil de engolir. Para Bregman, as pessoas trabalham demais e muitos trabalhos são inúteis ou deixam o trabalhador insatisfeito. Ele aposta na tecnologia para tornar obsoleto parte do trabalho humano, o que não é impossível, e também em jornadas mais curtas para que todos possam trabalhar. Mas como seria para empresas ter que contratar, treinar e gerenciar três vezes mais pessoas para produzir a mesma quantidade? Não só os salários, mas também os tempos da jornada obedecem a forças de mercado. Não quer dizer que sejam sempre os melhores, mas imaginar que seja possível mudá-los radicalmente por decreto é temerário. Em nada ajuda que ele considere o PIB uma medida de pouca importância.
Bregman pouco considera que não só o trabalho, mas também – e especialmente – o tempo livre pode entediar e gerar frustração existencial nos homens. A falta de desafios exteriores (ter que se sustentar, ter que aguentar o chefe, etc.) não é algo fácil de se lidar para muita gente.
Por fim, fronteiras abertas é uma medida possível e que, no que diz respeito à economia, Bregman está certo. Deixar que incentivos e forças de mercado determinem o emprego e levem a migrações aumentaria a produtividade mundial e tiraria outras centenas de milhões da pobreza (embora significasse também uma transição delicada para os trabalhadores nativos que teriam salários menores). O problema está nos aspectos culturais e sociais que ele insiste em ignorar, como se não existissem. E foi esse tipo de negação de questões reais que fortaleceu os piores demagogos corajosos o bastante para mencioná-las.
Se milhões de sudaneses e sírios entrassem na Holanda para viver de renda universal e trabalhar 15 horinhas, a sociedade holandesa continuaria de pé? Ou viraria um novo Sudão, incapaz de sustentar as próprias instituições que fizeram da Holanda um lugar propício para criar riqueza e viver em paz? Há, afinal de contas, bons motivos pelos quais a política imigratória deve, sim, buscar acolher imigrantes, mas fazê-lo de maneira controlada, não com a avalanche que a abertura das fronteiras permitiria, nesses tempos de alta mobilidade global.
No final das contas, não me convenço da utopia de Bregman. Mas ela permanece uma tentativa inspirada de fazer o que poucos fazem: criar visões de sociedades que nos inspirem a trabalhar por um ideal. Algo para sonhar e que nos tire da triste obsessão de apenas acompanhar a variação do PIB. Como brasileiro, no entanto, penso que seria bom que, pelo menos em sonho, o PIB continuasse a subir.