“UNCLE SAM”: Estados Unidos lutam para refazer a ordem mundial / J.M. Flag, poster de 1917 / Wikimedia Commons
Da Redação
Publicado em 18 de março de 2017 às 07h58.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h13.
A World in Disarray: American Foreign
Policy and the Crisis of the Old Order
Editora: Penguin press.
Autor: Richard Haas. 339 páginas.
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José Eduardo Barella
A globalização da economia e os avanços da era digital tornaram o mundo mais interconectado e, ao mesmo tempo, fragmentado. Nesse cenário difuso emergiram novas forças que atuam, para o bem e para o mal, à margem da diplomacia e do controle estatal, ameaçando a identidade nacional e o equilíbrio mundial: terrorismo religioso, ONGs com atuação em vários países, movimentos sectários, hackers agindo à espreita, fundos especulativos derrubando mercados, hordas de refugiados. Cabe aos Estados Unidos, sem o poder e a influência de antes, o difícil papel de articular um novo ordenamento nas relações internacionais.
Uma incômoda sensação de desgoverno acompanha a leitura de A World in Disarray: American Foreign Policy and the Crisis of the Old Order (“O mundo em desordem: a política externa americana e a crise da velha ordem”, numa tradução livre), novo livro do embaixador e estudioso americano Richard Haas. Com ideias claras e didatismo, Haas se propõe a mostrar como se deu esse processo histórico de mudanças e estabelecer os parâmetros do que ele chama de uma “ordem mundial 2.0”, mais condizente com a realidade atual dos Estados Unidos. Vale lembrar da suspeita de que hackers russos ajudaram a recente eleição de um populista para a Casa Branca e a transformação da China, um país comunista, em arauto do livre mercado dão uma ideia da bagunça em que o mundo se transformou.
O autor, no entanto, discorre sobre o assunto com desenvoltura. Considerado um dos maiores especialistas em relações internacionais do establishment americano, Haas escreveu outros 12 livros sobre o tema e preside desde 2003 o Council on Foreign Relations, um centro de pesquisas de política externa independente com sede em Nova York. Além de sólida formação acadêmica, Haas carrega a experiência de ter servido a dois presidentes americanos. No governo de George Bush (1989-1993) atuou como conselheiro presidencial sobre assuntos do Oriente Médio. Na gestão de Bush filho (2000-2007), foi assessor especial do secretário de Estado, Colin Powell, encarregado de coordenar o plano de reconstrução do Afeganistão.
Em A World in Disarray, Haas evita a armadilha de apresentar uma receita pronta para a diplomacia americana. Para o autor, “estamos testemunhando uma ampla rejeição à globalização e ao envolvimento internacional e, como resultado, um questionamento a posturas e políticas vigentes há tempos no cenário internacional, como a abertura aos tratados comerciais e à imigração”.
Contradição pós-Guerra Fria
O grande mérito de Haas é o de ter optado por uma narrativa linear e objetiva, evitando a linguagem hermética encontrada nas obras sobre diplomacia. O livro é dividido em três partes. Na primeira, Haas traça um rápido histórico das relações internacionais a partir do Tratado de Westfália, de 1648, que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos entre católicos e protestantes na Europa. O acordo, pelo qual os Estados se comprometeram a não mais interferir nos assuntos internos de outro país, moldou o modelo jurídico-diplomático que Haas chama de “ordem mundial 1.0”. Esse ordenamento, seguido desde então, atravessou aos trancos e barrancos as duas guerras mundiais do século 20 e se estendeu até o fim da Guerra Fria.
Na segunda parte do livro, de longe a mais interessante, Haas se debruça sobre os acontecimentos mundiais a partir da queda do Muro de Berlim e o fim da polarização Estados Unidos-União Soviética. Segundo ele, o mundo pós-Guerra Fria avançou em cima de uma contradição. Haas destaca exemplos importantes de estabilidade e progresso nos últimos 25 anos, incluindo a ausência de conflitos entre as grandes potências e o elevado grau de cooperação internacional para lidar com desafios, como o surgimento de epidemias e o aquecimento global. O crescimento da economia, um fenômeno global, tirou milhões da pobreza em todos os continentes – o volume de comércio no mundo mais que quintuplicou no período, de 3,5 trilhões de dólares em 1990 para 19 trilhões dólares em 2015.
Por outro lado, a partir dos anos 1990, a explosão de conflitos regionais expôs as dificuldades que os Estados Unidos, a superpotência que sobrou do antigo mundo bipolar, passaram a enfrentar para manter o equilíbrio mundial. O esfacelamento da Iugoslávia e a guerra étnica que deixou quase 1 milhão de mortos em Ruanda, para ficar em dois exemplos, mostraram a incapacidade de países fragilizados de proteger sua própria população de massacres. As intervenções, primeiramente humanitárias e depois militares, sob supervisão da ONU, sinalizaram a necessidade de mexer no conceito de soberania, símbolo da antiga ordem mundial – o que seria oficializado pela ONU em 2005, com a criação da doutrina legal “Responsabilidade para Proteger” (R2P, na sigla em inglês). Ela determina que cada país tem a obrigação de proteger sua população de genocídios, limpezas étnicas e outros crimes. Se o governo desse país se omitir, a comunidade internacional pode intervir. Foi a pá de cal no sagrado princípio de não-ingerência em assuntos internos de uma nação, herdado da velha ordem.
Haas também aponta as falhas da política externa americana em lidar com problemas regionais num mundo cada vez mais globalizado. Entre elas, a invasão do Iraque em 2003, sob o argumento de que Saddam Hussein estaria estocando armas químicas – o que jamais foi comprovado –, aliada a uma ilusão de que a democratização do país causaria um efeito cascata em todo o Oriente Médio. Enquanto gastava bilhões de dólares na aventura militar em meio ao avanço do terror islâmico, os Estados Unidos viraram as costas para ameaças estratégicas emergentes, como a proliferação nuclear de países como Paquistão, Coreia do Sul e Irã, a ocupação russa na Crimeia e a agressiva expansão comercial da China. A crise financeira de 2008 reforçou a ideia de que nem o capitalismo americano estava a salvo na nova era, expondo a fragilidade do modelo econômico, político e social dos Estados Unidos.
Na parte final do livro, o autor procurar alinhar as principais ameaças à hegemonia americana e ao equilíbrio global. Fazendo um paralelo com a era digital, afirma que o mundo precisa de um sistema operacional atualizado – o que ele chama de ordem mundial 2.0 –, que leve em conta as novas forças e desafios que surgiram no mundo pós-Guerra Fria. Haas adverte que os Estados Unidos não podem abrir mão do papel de anjo da guarda de países aliados em regiões estratégicas. A Ásia é um exemplo: Japão e Coreia do Sul dependem da proteção militar americana, e a alternativa – deixar que eles próprios cuidem de sua segurança, como sugeriu Donald Trump durante a campanha eleitoral – representa um convite para que os dois países entrem numa corrida por armas nucleares. Nesse cenário, as chances de um conflito entre as duas Coreias ou entre Japão e China cresceriam de forma significativa.
Como a hegemonia militar americana deverá perdurar por muito tempo, são sugeridas outras opções para que os Estados Unidos neutralizem possíveis ameaças. A China, por exemplo, pode ajudar a impedir a escalada nuclear da Coreia do Norte, o que parece ser um dos objetivos da política externa de Trump. A Europa, por precaução, deve ter sua segurança fortalecida na fronteira leste para desestimular novas aventuras da Rússia de Vladimir Putin. Em relação à política americana para o Oriente Médio, Haas dá um conselho definitivo: trata-se de uma região em que se deve apostar mais no que pode ser evitado do que no que seria potencialmente alcançado.
“Velho Oeste sem xerife”
O livro ganha intensidade na discussão de como enquadrar as novas forças do mundo globalizado, passo indispensável para colocar de pé um novo ordenamento nas relações internacionais. É aí que o caldo entorna. Haas propõe a criação de normas rígidas para disciplinar o ciberespaço (“Parece o Velho Oeste americano, só que sem xerife”) e para conter a disseminação de doenças e das redes multinacionais que operam sem controle dos países, como o crime organizado. No campo da diplomacia, defende o estabelecimento do conceito de “obrigação soberana” – um marco legal que determine o comprometimento de um país em relação aos demais no combate a ameaças que dizem respeito ao planeta como um todo, como o aquecimento global e a proliferação nuclear. Trata-se de um avanço em relação à doutrina R2P e uma nova tentativa de mobilizar a comunidade internacional. Embora merecedoras de atenção, essas propostas estão longe de entrar na lista das prioridades da atual administração americana.
Apesar do esmero em mapear detalhadamente os desafios globais, Haas foi superficial em relação a alguns temas. Sobre a América Latina, por exemplo, exaltou a ausência de conflitos e o crescimento econômico de 400% da região desde o fim da Guerra Fria, mas passou ao largo sobre o avanço do crime organizado e do narcotráfico. Também foi econômico na análise do surgimento do fundamentalismo islâmico e de como encaminhar temas atuais, como a crise dos refugiados e a ascensão do populismo.
De resto, é preciso destacar que alguns conceitos abordados por Haas servem de complemento a ideias apresentadas em livros recentes por outros dois nomes de peso da diplomacia americana. Em Ordem Mundial, de 2014, o ex-secretário de Estado Henry Kissinger já havia apontado o papel da globalização na ruína da antiga ordem internacional. Outra referência recente usada por Haas é o cientista político americano de origem polonesa Zbigniew Brzezinski, autor de Strategic Vision, de 2012. Brzezinski, que foi assessor de Segurança Nacional do governo Jimmy Carter (1977-1981), acredita que os Estados Unidos seguirão mantendo a liderança global de forma incontestável. Haas também prevê a manutenção da hegemonia americana nas próximas décadas, principalmente pelo seu poderio militar. Mas, ao contrário de Kissinger e Brzezinski, é mais pessimista em relação às dificuldades que os Estados Unidos terão pela frente. A percepção que seu livro suscita é a de que o mundo se tornou um lugar de futuro incerto. Ele não diz, mas todos sabemos que as incertezas aumentaram ainda mais com o novo inquilino da Casa Branca.