Bolsonaro: "A minha impressão é que a gente vai para uma estagnação nos próximos anos", afirmou Samuel Pessôa (Chris Kleponis/Getty Images)
Estadão Conteúdo
Publicado em 12 de abril de 2019 às 16h57.
Última atualização em 12 de abril de 2019 às 17h00.
Rio — Os 100 primeiros dias do governo Jair Bolsonaro (PSL) serviram para ajustar expectativas em relação à economia, expuseram as dificuldades de articulação política entre Executivo e Legislativo para tirar propostas e reformas do papel e revelaram contradições internas em torno da agenda liberal capitaneada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. As conclusões saíram do seminário "100 dias do Governo Bolsonaro", promovido pelo jornal O Estado de S. Paulo e pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV) nesta sexta-feira, 12, no Rio de Janeiro.
Criticada, a decisão do governo de impedir a Petrobras de aplicar reajuste no preço do diesel, tomada na noite de quinta-feira, 11, foi citada como exemplo das contradições em torno da agenda liberal. "Essa decisão foi uma surpresa, foi totalmente contra a política liberal do governo", afirmou, num dos painéis do seminário, o pesquisador do Ibre/FGV Fernando Veloso, doutor em economia pela Universidade de Chicago.
Para o pesquisador, o ministro da Economia "surpreendeu positivamente" ao montar uma equipe "muito mais coesa do que se esperava", mas ações como o reajuste do diesel expõem as contradições. Veloso citou também o perdão de dívidas com o Funrural - o governo lançou um programa de parcelamento de débitos com a contribuição previdenciária do setor, que deu um desconto de R$ 15 bilhões, e um projeto de lei capitaneado pela bancada ruralista no Congresso Nacional pretende perdoar toda a dívida, de R$ 17 bilhões.
Na visão de Veloso, as medidas podem ser uma reação a grupos da sociedade que apoiaram Bolsonaro na campanha, linha de análise também seguida por outro participante do seminário, o pesquisador Samuel Pessôa, também do Ibre/FGV.
Pessôa vê nos interesses corporativos de grupos organizados, como no caso dos caminhoneiros que pedem por controle nos preços do diesel e dos produtores rurais, o maior obstáculo à agenda liberal no País. "A agenda liberal no Brasil é a agenda de enfrentamento dos interesses corporativos e particulares", disse o pesquisador.
Em seus comentários no painel, Pessôa desenhou um cenário "sombrio sem ruptura" para a economia brasileira, em que, após a aprovação tardia de uma reforma da Previdência com impacto fiscal desidratado, a atividade econômica ficaria estagnada com crescimento de 1% a 2% ao ano.
"A minha impressão é que a gente vai para uma estagnação nos próximos anos. Não sei se é 1% ou 2% (de crescimento econômico ao ano). A pergunta é se com uma (reforma da) Previdência medíocre teremos uma ruptura", disse o pesquisador, respondendo, em seguida, que não vê ruptura na economia, ou seja, uma volta da recessão, por causa de uma série de "amortecedores" de uma eventual crise mais profunda.
Entre os "amortecedores", Pessôa citou o fato de ser feita "alguma reforma" na Previdência, o elevado nível de reservas cambiais, a regra do teto de gastos públicos, que impediria uma elevação exagerada dos gastos, e a inflação baixa, tanto corrente quanto nas expectativas.
Inflação baixa deixaria as taxas de juros nas mínimas históricas, o que, ao lado de devoluções antecipadas da dívida do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) com a União, seguram o ritmo de expansão da relação entre dívida pública e Produto Interno Bruto (PIB).
A expectativa de que a proposta de reforma da Previdência enviada pelo governo federal ao Congresso será aprovada foi consensual entre os palestrantes do seminário. Muitos previram, porém, que o formato final após a aprovação terá impacto fiscal inferior ao R$ 1,1 trilhão em dez anos proposto e que a tramitação será longa.
Para os pesquisadores Sílvia Matos e Bruno Ottoni, também do Ibre/FGV, o governo deveria ter se empenhado em aprovar uma versão mais simples da reforma da Previdência, como a proposta pelo governo do ex-presidente Michel Temer (MDB). A ideia seria destravar as demais reformas ainda necessárias para recuperar a confiança e fazer deslanchar a economia.
"Será que não seria mais fácil ser menos ambicioso e votar a reforma do governo Temer e virar a página e dar prosseguimento às outras reformas?", ponderou Matos, coordenadora do Boletim Macro do Ibre.
Para Ottoni, a prorrogação dos debates sobre o tema pode fazer com que a reforma proposta pelo governo Bolsonaro não apenas se estenda mais tempo do que o desejado, como ainda chegue ao fim do ano "desidratada".
Na visão de Manoel Pires, pesquisador do Ibre/FGV e integrante da equipe do Ministério da Fazenda no segundo governo Dilma Rousseff, o governo Bolsonaro erra ao focar no impacto fiscal de em torno de R$ 1 trilhão em dez anos.
Em vez disso, seria melhor abordar a necessidade de uma reformulação da Previdência para manter a sustentabilidade do bem-estar da população. O pesquisador criticou a forma como o governo Bolsonaro enviou a proposta para as mudanças na previdência dos militares. "Foi um tiro no peito da reforma da Previdência", disse Pires.
O coordenador da Economia Aplicada do Ibre/FGV, Armando Castelar, lembrou que o principal movimento de "ajuste de expectativas" nos primeiros 100 anos de governo se deu nas projeções de crescimento do PIB. O pesquisador destacou que a mediana das projeções saiu de 2,5% na virada do ano para 2,0% após as trocas de farpas públicas entre Bolsonaro e o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ).
"Quando começa um governo, temos uma ideia parca do que vai acontecer. Os 100 primeiros dias servem para afinar as expectativas", afirmou Castelar.
No campo da política, a opção do governo Bolsonaro por rejeitar as articulações tradicionais do sistema presidencialista de coalizão poderá tornar ainda mais difícil a aprovação de matérias no Congresso ou, num cenário extremo, levar à queda do governo, na avaliação do cientista político Carlos Pereira, professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape/FGV).
Segundo Pereira, o sistema político brasileiro "já deu provas" de que é capaz de "dar cabo" de presidentes que não atendem à expectativa de seguir as regras tradicionais do sistema, citando os impeachments dos ex-presidentes Fernando Collor e Dilma Rousseff.
Outra possibilidade, segundo o cientista político, é a falta de articulação com o Legislativo "encarecer" o custo da negociação pela aprovação de matérias de interesse do governo. Isso porque, explicou Pereira, o sistema presidencialista de coalizão tem como regras tradicionais o uso de "moedas de troca", legítimas e legais, em nome de obter apoio, como a liberação de emendas parlamentares no Orçamento e a divisão de poder na burocracia com a nomeação para cargos estratégicos.
A aprovação, na Câmara dos Deputados, da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que tornou obrigatória a execução das emendas parlamentares ao Orçamento, segundo Pereira, é uma reação do Legislativo à falta de negociação por parte do governo. Com a medida, a "moeda de troca" da liberação das emendas fica prejudicado.
"O governo está contrariando a natureza do sistema. Ou esse sistema vai inflacionar o preço do apoio, incorporando as moedas tradicionais como dadas, ou o próprio sistema vai dar um jeito de se livrar desse corpo estranho", afirmou Pereira.