Maquiavel nas ruínas da Greensill Capital
Precisamos destacar o mundo sombrio do lobby corporativo, a regulamentação do risco e outras questões na interseção de capitalismo e governo
Publicado em 6 de maio de 2021 às, 13h37.
PRINCETON – O colapso da Greensill Capital, empresa de serviços financeiros com sede em Londres, oferece um oportuno, porém caro, alerta sobre uma série de tendências contemporâneas. Claramente, devemos ser cautelosos com a onda em torno da inovação financeira. Mas também precisamos destacar o mundo sombrio do lobby corporativo, a regulamentação do risco e outras questões na interseção de capitalismo e governo.
A Greensill supostamente tentou usar o ex-primeiro-ministro britânico David Cameron para convencer o governo saudita a pressionar investidores a contribuírem com mais fundos para o SoftBank, para que este pudesse aumentar seu apoio à Greensill. Assim sendo, após o início da pandemia, Cameron supostamente fez lobby para que a Greensill garantisse o acesso a um esquema de empréstimo emergencial e pressionou o Serviço Nacional de Saúde a adotar um aplicativo de propriedade da Greensill para pagar a equipe do SNS diariamente em vez de mensalmente.
Mas o fato da Greensill estar usando um avançado aplicativo de pagamento não significa que ela tenha sido uma verdadeira inovação financeira. Na realidade, suas atividades de financiamento eram em grande parte limitadas a um negócio de aço com foco restrito: a Aliança GFG do empresário indiano Sanjeev Gupta.
Por que funcionários do governo da Arábia Saudita prestando serviços ao Reino Unido depositariam sua confiança numa empresa desse tipo?
A resposta superficial é que a Greensill estava vendendo novos e chamativos modelos de financiamento que prometiam ajudar os sauditas a modernizar o gerenciamento da peregrinação anual a Meca e o SNS a simplificar sua folha de pagamento.
E, no entanto, essas ofertas não eram nenhuma novidade. O grande boom de financeirização que começou no final do século 20 foi há muito impulsionado pela securitização, que permite às empresas criar uma infinita gama de “novos” produtos. O processo envolve o agrupamento de um conjunto diversificado de ativos para criar um conjunto aparentemente mais seguro ou transparente, que pode então ser dividido e comercializado de acordo com vários critérios. Em última análise, os tipos e níveis de risco podem ser desagregados e vendidos para aqueles que desejam obtê-los.
Após a crise financeira de 2008, a securitização foi responsável por amplificar, ao invés de reduzir, o risco, e a euforia em torno do processo se evaporou com razão. Mas a prática não acabou. No caso da firma homônima do financista Lex Greensill, a prática foi usada para fazer pacotes e vender empréstimos para grandes instituições financeiras, como o Credit Suisse.
Greensill foi um importante jogador no nicho do mercado de financiamento da cadeia de suprimentos, por meio da qual um credor adianta pagamentos aos fornecedores de um grande comprador mediante uma taxa. O financiamento da cadeia de suprimentos pode não ser familiar para a maioria dos leitores; mas não é novidade. Na verdade, os historiadores a veem como a aplicação financeira mais antiga, nascida em uma época em que os comerciantes geralmente não tinham dinheiro para pagar suas mercadorias até que seus estoques fossem distribuídos ou vendidos. Financiar a transação dando ao comerciante um crédito com a garantia de uma fatura ou uma promessa de pagamento satisfazia uma necessidade não atendida. Há evidências de que o processo era familiar até mesmo entre os antigos mesopotâmios.
Acima de tudo, porém, o financiamento da cadeia de suprimentos foi a peça central dos bancos e finanças do final da Idade Média e do início da era moderna. Aqui, a inovação decisiva foi a letra de câmbio, documento que exige o pagamento de uma determinada quantia em algum momento no futuro. Os comerciantes compravam uma letra de câmbio e a enviavam para o país de onde queriam importar, onde ela poderia ser usada para garantir a propriedade de um produto – digamos, um fardo de lã – por outro comerciante que, então, apresentaria a nota ao agente do emissor original.
Basicamente, esse processo eliminou a necessidade de transportar grandes quantidades de dinheiro. Mas também atuou como instrumento de crédito inicial: como os emissores de letras costumavam trabalhar com grandes depósitos de clientes, eles tinham condições de se envolver em outras atividades bancárias ao mesmo tempo.
Greensill - mas especialmente seus ingênuos credores (acima de todos o SoftBank e o Credit Suisse) – teria feito bem se tivesse estudado alguns desses bancos medievais, sendo os mais bem documentados aqueles sediados em Florença. Entre estes, o banco florentino mais famoso até hoje que foi a Casa dos Médici (que também eram patronos das artes, dos políticos e até dos papas).
Em A ascensão e declínio do Banco Medici: 1397-1494, o historiador flamengo do século 20, Raymond de Roover, explica, entre outras coisas, como o banco administrava filiais não apenas em Roma, Veneza, Nápoles e Milão, mas também, por meio de acordos de parceria, em Avignon, Genebra, Bruges e Londres.
As agências em Bruges e Londres eram as mais problemáticas, em parte por causa da distância geográfica, mas também porque precisavam interagir constantemente com estados fortes e imprevisíveis. Como consequência, os agentes locais do banco Medici precisavam fazer um lobby intenso, oferecendo concessões aos governantes em troca de favores, como permissão para exportar os bens (lã) cujo comércio estavam financiando. Isso os levou a emprestar cada vez mais aos governos, que usavam o dinheiro em seus próprios interesses.
Mas o financiamento do banco Medici à Guerra das Rosas na Inglaterra introduziu uma crucial fraqueza financeira. Como a filial de Londres precisava emprestar quantias cada vez maiores a Eduardo IV para guerras e dotes a fim de garantir alianças políticas, o primeiro agente da filial, enojado, desistiu da tarefa. Mas foi substituído por Gherardo Canigiani, que acabou se tornando um devoto seguidor do rei – às custas dos interesses do banco. No final, a parceria terminou em falência.
O banco Medici – que faliu completamente alguns anos depois – serviu de lição exemplar para Niccolò Machiavelli, cuja História de Florença atribuiu a queda do banco ao fato de seus gerentes de filiais terem começado a agir como príncipes eles próprios. Essa história foi então redefinida por Adam Smith para mostrar como as empresas governamentais (como o banco Medici havia se tornado) eram corruptas e esbanjadoras, permitindo que Lorenzo, o Magnífico, usasse "a receita do estado ao seu bel prazer".
Shakespeare também ofereceu uma palavra de cautela. O Mercador de Veneza começa com o comerciante Antonio se vangloriando da extensão da diversificação de seu portfólio. ““Meus negócios não estão em um e confiável reduto, / Nem em um único lugar; nem toda a minha propriedade / Pela sorte deste ano: / Portanto, minha mercadoria não me deixa triste”. Mas logo em seguida, seus navios e sua carga foram perdidos no mar, deixando-o sem nada para pagar suas dívidas.
As lições da interseção de finanças e política não terminaram em Maquiavel, Shakespeare e Smith. Continuaremos a ignorá-las?
Harold James é Professor de História e Assuntos Internacionais, na Universidade de Princeton e Membro Sênior do Centro de Governança Internacional para a Inovação. É autor do livro a ser lançado brevemente: The War of Words (A Guerra das Palavras), pela Editora da Universidade de Yale.
Direitos Autorais: Project Syndicate, 2021. www.project-syndicate.org
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