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As economias adoecidas pela covid-19

As duas economias com pior desempenho no segundo trimestre de 2020 (abril-junho) foram Peru e Índia, onde o PIB encolheu 30,2% e 23,9%, respectivamente

Peru: o país é um dos mais atingidos pela pandemia na América Latina. (Carlos MAMANI/AFP)
MD

Matheus Doliveira

Publicado em 28 de setembro de 2020 às 11h31.

ITHACA –  Os limites entre as disciplinas acadêmicas são sempre criações artificiais destinadas a facilitar a análise, dadas as nossas limitações. Mas, como o economista Albert Hirschman certa vez argumentou, às vezes cabe a nós transgredi-los. A batalha em curso contra o COVID-19 e suas consequências econômicas é um desses momentos.

A pandemia lançou uma sombra sobre a economia global. Até agora, as duas economias com pior desempenho no segundo trimestre de 2020 (abril-junho) foram Peru e Índia, onde o PIB encolheu 30,2% e 23,9%, respectivamente, em termos de ano a ano. Esses declínios recordes foram causados ​​pela pandemia, mas também pela forma como lidamos com ela.

No Peru , por exemplo, a taxa bruta de mortalidade (TBM) – o número de mortes por milhão de pessoas pelo COVID-19 é de 939. A queda em seu PIB está claramente relacionada a isso.

Vários países europeus com altas TBM’s como Espanha (647) e Reino Unido (613), também relataram algumas das crises econômicas mais profundas. Mas a TBM da Índia é de apenas 60, o que, embora uma das mais altas da Ásia e da África, torna sua forte contração no segundo trimestre (maior do que quase qualquer país do mundo) difícil de explicar – especialmente considerando-se que a economia indiana estava entre as três ou quatro do mundo de crescimento mais rápido até cinco anos atrás.

Como compreender essas anomalias? Para entender essas questões, precisamos reconhecer a interação entre medicina e comportamento humano.

Consideremos a sabedoria convencional de que o COVID-19 é provavelmente mais transmitido em espaços fechados do que em áreas abertas. Portanto, fica-se mais seguro estando perto de alguém em um parque do que em um restaurante.

Presumimos que esse conceito tenha vindo da medicina e da física, que nos dizem, respectivamente, que o COVID-19 é altamente infeccioso e que os aerossóis que transportam o vírus SARS-CoV-2 (que causa a doença) são suscetíveis de se espalhar e não chegar em suas narinas em parques ao ar livre. Mas não é necessariamente assim, porque os aerossóis são relativamente pesados ​​e tendem a cair rapidamente no ar parado. Por outro lado, uma brisa em um espaço aberto torna provável que o aerossol permaneça no ar por mais tempo e, portanto, representa um risco que não existe em ambiente fechado.

A afirmação de que os espaços fechados são mais perigosos pode, entretanto, ser verdadeira – não por causa do que sabemos sobre o coronavírus e a aerodinâmica dos aerossóis, mas por causa do comportamento humano.

Imaginemos, para fins de argumentação, que a probabilidade de o vírus ser transmitido por uma pessoa infectada nas proximidades seja de 50% tanto em um restaurante como em um parque. Imaginemos ainda que metade da população esteja infectada. Portanto, se você estiver perto de uma pessoa qualquer em um parque ou restaurante, a probabilidade de contrair o COVID-19 é de 25%.

Vamos supor, entretanto, que uma autoridade confiável anuncie que o risco de contrair COVID-19 é maior em um restaurante do que em um parque. Se as pessoas acreditarem nisso, o argumento pode acabar sendo uma profecia autorrealizável. Os restaurantes terão menos apelo para pessoas avessas ao risco (digamos, aqueles que não vão a lugares onde o risco de infecção é superior a 25%). Assim, apenas pessoas mais tolerantes ao risco irão a restaurantes.

É razoável supor que os clientes do restaurante têm, portanto, maior probabilidade de se infectarem, porque estariam correndo mais riscos. Vamos supor, para simplificar, que 75% das pessoas tolerantes ao risco estão infectadas, enquanto apenas 25% das pessoas avessas ao risco estão. A probabilidade de uma pessoa infectada transmitir o vírus ainda é de 50%, como antes. Então, se as pessoas acreditarem que os restaurantes são mais perigosos (e apenas os tolerantes ao risco entram neles), a probabilidade de contrair o vírus em um restaurante é de 37,5%, enquanto a probabilidade de contraí-lo em um parque é inferior a 25%.

Essas probabilidades serão confirmadas pelos dados epidemiológicos, e a maioria das pessoas acreditará que o padrão tem algo a ver com a natureza do vírus, em vez de ser impulsionado inteiramente pelo comportamento humano. Com esse argumento, se as autoridades tivessem anunciado que os restaurantes eram mais seguros do que os parques, com o tempo os parques teriam se tornado o lugar mais arriscado. Mesmo se os parques fossem mais seguros do que os restaurantes por razões epidemiológicas e físicas do movimento dos aerossóis, as pessoas poderiam enfrentar um risco maior em um parque do que em um restaurante se fosse amplamente aceito que os parques eram mais perigosos do que os restaurantes.

O reconhecimento desses tipos de conexões cria espaço para intervenções políticas que podem conter o vírus sem prejudicar a economia. O erro da Índia foi impor um “bloqueio” – termo inadequado, porque forçou dezenas de milhões de trabalhadores migrantes a se espalharem pelo país, muitas vezes a pé, depois que seus empregos e salários nos centros urbanos desapareceram da noite para o dia.

Assim que identificarmos as ligações entre medicina e economia, ideias fascinantes de políticas começarão a surgir, como relatou Joshua Weitz do Instituto de Tecnologia da Georgia em um recente webinar da  Escola de Economia de Estocolmo.

Países como Índia ou Peru precisam criar regras de comportamento que permitam que a economia funcione, pelo menos parcialmente, enquanto detém o vírus. Aqui está uma ideia. Como o aumento dos testes nos dá uma noção melhor de quem teve COVID-19 e anticorpos contra SARS-CoV-2, poderemos oferecer a essas pessoas um salário muito alto para fazer trabalhos de risco durante o COVID-19 – inclusive em hospitais e em setores comerciais envolvendo interação cara-a-cara. Ao usá-las como elos entre pessoas vulneráveis, podemos manter as cadeias de suprimentos intactas enquanto interrompemos as cadeias de transmissão de vírus.

Em circunstâncias normais, o mercado faria isso por conta própria: a demanda por pessoas com anticorpos aumentaria, e também seus salários. Mas os mercados não funcionam bem durante uma pandemia, quando muitos fatores externos estão em ação. Os governos, portanto, precisam intervir com políticas inteligentes e bem planejadas, que nos permitiriam manter o vírus sob controle sem paralisar a economia.

*Kaushik Basu foi economista sênior do Banco Mundial e Consultor-Chefe de Economia do Governo da Índia, é Professor de Economia na Universidade de Cornell e Membro Sênior não-residente da Brookings Institution.

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ITHACA –  Os limites entre as disciplinas acadêmicas são sempre criações artificiais destinadas a facilitar a análise, dadas as nossas limitações. Mas, como o economista Albert Hirschman certa vez argumentou, às vezes cabe a nós transgredi-los. A batalha em curso contra o COVID-19 e suas consequências econômicas é um desses momentos.

A pandemia lançou uma sombra sobre a economia global. Até agora, as duas economias com pior desempenho no segundo trimestre de 2020 (abril-junho) foram Peru e Índia, onde o PIB encolheu 30,2% e 23,9%, respectivamente, em termos de ano a ano. Esses declínios recordes foram causados ​​pela pandemia, mas também pela forma como lidamos com ela.

No Peru , por exemplo, a taxa bruta de mortalidade (TBM) – o número de mortes por milhão de pessoas pelo COVID-19 é de 939. A queda em seu PIB está claramente relacionada a isso.

Vários países europeus com altas TBM’s como Espanha (647) e Reino Unido (613), também relataram algumas das crises econômicas mais profundas. Mas a TBM da Índia é de apenas 60, o que, embora uma das mais altas da Ásia e da África, torna sua forte contração no segundo trimestre (maior do que quase qualquer país do mundo) difícil de explicar – especialmente considerando-se que a economia indiana estava entre as três ou quatro do mundo de crescimento mais rápido até cinco anos atrás.

Como compreender essas anomalias? Para entender essas questões, precisamos reconhecer a interação entre medicina e comportamento humano.

Consideremos a sabedoria convencional de que o COVID-19 é provavelmente mais transmitido em espaços fechados do que em áreas abertas. Portanto, fica-se mais seguro estando perto de alguém em um parque do que em um restaurante.

Presumimos que esse conceito tenha vindo da medicina e da física, que nos dizem, respectivamente, que o COVID-19 é altamente infeccioso e que os aerossóis que transportam o vírus SARS-CoV-2 (que causa a doença) são suscetíveis de se espalhar e não chegar em suas narinas em parques ao ar livre. Mas não é necessariamente assim, porque os aerossóis são relativamente pesados ​​e tendem a cair rapidamente no ar parado. Por outro lado, uma brisa em um espaço aberto torna provável que o aerossol permaneça no ar por mais tempo e, portanto, representa um risco que não existe em ambiente fechado.

A afirmação de que os espaços fechados são mais perigosos pode, entretanto, ser verdadeira – não por causa do que sabemos sobre o coronavírus e a aerodinâmica dos aerossóis, mas por causa do comportamento humano.

Imaginemos, para fins de argumentação, que a probabilidade de o vírus ser transmitido por uma pessoa infectada nas proximidades seja de 50% tanto em um restaurante como em um parque. Imaginemos ainda que metade da população esteja infectada. Portanto, se você estiver perto de uma pessoa qualquer em um parque ou restaurante, a probabilidade de contrair o COVID-19 é de 25%.

Vamos supor, entretanto, que uma autoridade confiável anuncie que o risco de contrair COVID-19 é maior em um restaurante do que em um parque. Se as pessoas acreditarem nisso, o argumento pode acabar sendo uma profecia autorrealizável. Os restaurantes terão menos apelo para pessoas avessas ao risco (digamos, aqueles que não vão a lugares onde o risco de infecção é superior a 25%). Assim, apenas pessoas mais tolerantes ao risco irão a restaurantes.

É razoável supor que os clientes do restaurante têm, portanto, maior probabilidade de se infectarem, porque estariam correndo mais riscos. Vamos supor, para simplificar, que 75% das pessoas tolerantes ao risco estão infectadas, enquanto apenas 25% das pessoas avessas ao risco estão. A probabilidade de uma pessoa infectada transmitir o vírus ainda é de 50%, como antes. Então, se as pessoas acreditarem que os restaurantes são mais perigosos (e apenas os tolerantes ao risco entram neles), a probabilidade de contrair o vírus em um restaurante é de 37,5%, enquanto a probabilidade de contraí-lo em um parque é inferior a 25%.

Essas probabilidades serão confirmadas pelos dados epidemiológicos, e a maioria das pessoas acreditará que o padrão tem algo a ver com a natureza do vírus, em vez de ser impulsionado inteiramente pelo comportamento humano. Com esse argumento, se as autoridades tivessem anunciado que os restaurantes eram mais seguros do que os parques, com o tempo os parques teriam se tornado o lugar mais arriscado. Mesmo se os parques fossem mais seguros do que os restaurantes por razões epidemiológicas e físicas do movimento dos aerossóis, as pessoas poderiam enfrentar um risco maior em um parque do que em um restaurante se fosse amplamente aceito que os parques eram mais perigosos do que os restaurantes.

O reconhecimento desses tipos de conexões cria espaço para intervenções políticas que podem conter o vírus sem prejudicar a economia. O erro da Índia foi impor um “bloqueio” – termo inadequado, porque forçou dezenas de milhões de trabalhadores migrantes a se espalharem pelo país, muitas vezes a pé, depois que seus empregos e salários nos centros urbanos desapareceram da noite para o dia.

Assim que identificarmos as ligações entre medicina e economia, ideias fascinantes de políticas começarão a surgir, como relatou Joshua Weitz do Instituto de Tecnologia da Georgia em um recente webinar da  Escola de Economia de Estocolmo.

Países como Índia ou Peru precisam criar regras de comportamento que permitam que a economia funcione, pelo menos parcialmente, enquanto detém o vírus. Aqui está uma ideia. Como o aumento dos testes nos dá uma noção melhor de quem teve COVID-19 e anticorpos contra SARS-CoV-2, poderemos oferecer a essas pessoas um salário muito alto para fazer trabalhos de risco durante o COVID-19 – inclusive em hospitais e em setores comerciais envolvendo interação cara-a-cara. Ao usá-las como elos entre pessoas vulneráveis, podemos manter as cadeias de suprimentos intactas enquanto interrompemos as cadeias de transmissão de vírus.

Em circunstâncias normais, o mercado faria isso por conta própria: a demanda por pessoas com anticorpos aumentaria, e também seus salários. Mas os mercados não funcionam bem durante uma pandemia, quando muitos fatores externos estão em ação. Os governos, portanto, precisam intervir com políticas inteligentes e bem planejadas, que nos permitiriam manter o vírus sob controle sem paralisar a economia.

*Kaushik Basu foi economista sênior do Banco Mundial e Consultor-Chefe de Economia do Governo da Índia, é Professor de Economia na Universidade de Cornell e Membro Sênior não-residente da Brookings Institution.

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