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A incrível história da queda de Harvey Weinstein

Escrevi este artigo por inspiração de uma amiga que decidiu que não veria mais nenhum filme de qualquer um dos pervertidos, Woody Allen incluído

Hollywood: marcha #MeToo terminará em uma manifestação no cruzamento do Hollywood Boulevard (Lucy Nicholson/Reuters)
Hollywood: marcha #MeToo terminará em uma manifestação no cruzamento do Hollywood Boulevard (Lucy Nicholson/Reuters)
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Silvio Genesini

Publicado em 27 de outubro de 2017 às, 11h43.

Última atualização em 27 de outubro de 2017 às, 17h43.

O todo poderoso produtor de Hollywood, Harvey Weinstein, assediou sexualmente dezenas de mulheres e foi protegido, pelo seu entorno, por mais de 30 anos. Duas reportagens investigativas publicadas no início de outubro dispararam uma reação fulminante que precipitou a sua queda livre.

O roteiro desta história tem todos os ingredientes para ser um sucesso de audiência por muito tempo. É mais rica em suspense, intriga e participações improváveis de personagens surpreendentes que muitas séries de TV de sucesso.

O primeiro artigo denunciando Weinstein foi publicado no dia 5 de outubro no New York Times, fruto de meses de trabalho investigativo das jornalistas Jodi Kantor e Megan Twohey. Cinco dias depois um outro artigo escrito por Ronan Farrow foi publicado pela revista New Yorker.

Ambas as reportagens, com personagens e enredos essencialmente distintos, contavam a trama de décadas de relações impróprias do produtor com mulheres, na sua maioria atrizes. Com a publicação dos artigos outras personalidades, como Angelina Jolie e Gwyneth Paltrow, apareceram para confirmar que Havey era realmente um crápula.

A reação dos grupos de pressão “empoderados” pelas redes sociais se espalhou como um rastilho de pólvora. Ele foi demitido da sua própria empresa – Weinstein & Co. – pelo conselho, liderado pelo próprio irmão, Bob. A Academia de Cinema de Hollywood (organizadora do Oscar), que nunca antes tinha ejetado outro membro por razões similares, o expulsou.

O que mais intrigou todo mundo foi como, em uma época de comunicação máxima e privacidade zero, tantos casos e tantas transgressões foram mantidas com uma circulação controlada por tanto tempo. É claro que existiam boatos. É claro também que muita gente sabia. Jody Kantor disse em uma entrevista para a CNN que: “a história tinha uma qualidade bizarra de ser metade um segredo aberto e metade uma coisa escondida que as pessoas estavam aterrorizadas em falar publicamente”.

É razoável pensar que atrizes como Ashley Judd e Rose McGowan, duas das vítimas, tivessem medo de acusar alguém tão bem relacionado e influente na indústria, mas, admitir que Angelina Jolie e Gwyneth Paltrow também se amedrontaram é simplificar uma história complexa e muito mais cheia de nuances

Para demonstrar que a narrativa não tem apenas mocinhos e bandidos, Scott Rosenberg, um roteirista que trabalhou com Harvey nos tempos da Miramax – primeiro estúdio dos irmãos Weinstein que foi vendido para a Disney -, escreveu um longo post no Facebook falando de sua relação com o produtor.

Disse que ele estava lá de 1994 até 2000, anos dourados que produziram filmes como Pulp Fiction, Shakespeare in Love (Oscar em 99), O Paciente Inglês (Oscar em 97), A Vida é Bela (com o italiano Roberto Begnini), entre muitos outros. “Eu tinha 30 anos. Estava certo que tinha descoberto o ouro. Eles me amavam, estes dois irmãos, que tinham reinventado o cinema. Sim, eu estava lá. E deixe-me ser absolutamente claro sobre uma coisa: everybody-fucking.knew (em um inglês que não precisa de tradução)”.

Além de todo mundo saber e não ter coragem ou não querer contar, outra condição que impediu que a história se espalhasse foi a eficiência com que Weinstein e seus advogados fizeram acordos de indenização, com cláusulas de confidencialidade, com as vítimas. Pelo menos 8 deles vieram a público com a publicação da reportagem. Incrivelmente, tais acordos, agora revelados, eram obscenamente baixos para o tamanho da acusação. Variavam entre 80.000 e 150.000 dólares.

Só para comparar, Bill O´Reilly – âncora da Fox News demitido neste ano também por acusações de assédio sexual – pagou 32 milhões de dólares em um acordo com Lis Wihel, uma analista de assuntos legais da rede. Em 2004 ele fechou outro acordo com a produtora Andrea Mackris por 9 milhões de dólares. Contando outros acertos conhecidos de O´Reilly o valor total chega a 45 milhões de dólares.

Uma das formas eficientes e muito utilizada, nos países do hemisfério norte, para punir contraventores é tomar o seu dinheiro. Parece incrível que os acordos foram feitos com valores tão baixos incluindo cláusulas tão estritas de confidencialidade. Jodi e Megan só conseguiram romper o círculo de silêncio quando descobriram documentos internos que demonstravam que os casos eram de conhecimento dos administradores da companhia.

Outro capítulo impressionante desta novela foi a saga de Ronan Farrow para ter seu artigo publicado. Ele estava originalmente fazendo a investigação para canal de notícias da NBC, que, apesar das evidências, não demonstrou interesse em veicular. Argumentaram que Ronan não havia conseguido ninguém que concordasse em gravar um depoimento dos assédios em vídeo. Desculpa difícil de engolir diante de tantas evidências e da importância do furo.

Para parecer ainda mais com roteiro de séries, Ronan Farrow é o único filho biológico de Mia Farrow, a ex-esposa de Woody Allen. No episódio em que o cineasta foi acusado de ter molestado Dylan, sua filha adotiva com Mia, Ronan ficou do lado da mãe e tem culpado a mídia de ter tratado inapropriadamente a acusação.

Quando confrontado com as denúncias sobre Weinstein, Allen disse que era um episódio triste para todas as partes, que não havia vencedores e emendou com a preocupação de que as revelações poderiam criar uma atmosfera de caça às bruxas. Previsivelmente, apanhou por todos os lados. George Clooney disse que o comentário era “uma coisa estúpida”, depois de bater muito em Weinstein com quem conviveu e trabalhou por mais de 20 anos. Quando perguntado disse que sempre ouviu rumores sobre o comportamento do produtor. Woody Allen teve que, rapidamente e pateticamente, remendar suas afirmações.

Kate Winslet foi outra que condenou Weinstein com veemência, mas se recusou a falar mal de Woody Allen, com quem filma um novo longa chamado Wonder Wheel. Apanhou também. Circulam pela rede fotos dela abraçada com Roman Polanski, na estreia em Paris do excelente filme Carnage de 2011, em que ele foi diretor e ela atriz. Como se sabe Polanski foi acusado e condenado por abusar de uma menor 40 anos atrás e até hoje não pode voltar aos Estados Unidos sem ser preso.

A publicação mais recente foi de uma lista de outros 10 homens (por enquanto) que são acusados de crimes parecidos. Entre eles estão o próprio Polanski, Bob Weinstein (o irmão), Oliver Stone (de Platoon e JFK), Ben Afleck e até o ex-presidente Bush, pai.

Se não é uma caça às bruxas é, pelo menos, o estouro de uma panela de pressão descontrolada. Escrevi este artigo por inspiração de uma amiga querida que me supriu de informações, surtou com os enredos sórdidos e decidiu que não veria mais nenhum filme ou obra de qualquer um dos pervertidos, Woody Allen incluído. Os filmes continuam tão bons ou medíocres com sempre foram.

Em tempos de moralismo exacerbado e ativismo engajado, o risco de passarmos de uma causa justa para um patrulhamento generalizado de comportamentos e opiniões é imenso.

A qualidade do jornalismo investigativo de Jodi e Megan no New York Times e Ronan na New Yorker é uma prova inequívoca da importância da mídia tradicional e independente. Sem elas e ele, a rede de proteção em torno de Weinstein não seria rompida.

O mundo tem um desafio. Criar uma cultura, adequada aos tempos futuros, em que o não possa ser dito sem medo, mas, que não imponha a ninguém um comportamento único, padronizado e falsamente moralizador e, principalmente, que não proíba de dizer sim, quando esse for o desejo.