Análise: pressão sobre Lula vira oportunidade para ajuste de Haddad
Contingências políticas locais e internacionais exigem do governo mais zelo com as contas públicas
Vice-presidente da Ágora Assuntos Públicos
Publicado em 12 de novembro de 2024 às 15h44.
Última atualização em 12 de novembro de 2024 às 15h56.
O governo Lula experimenta uma “tempestade perfeita” com a junção de desafios políticos e econômicos, desenhada tanto pela derrota da esquerda nas recentes eleições municipais quanto pelo impacto global da maiúscula vitória de Donald Trump nos Estados Unidos. Este cenário adverso, que teria todos os ingredientes para tornar ainda mais árdua a missão do Planalto, paradoxalmente oferece uma rara janela de oportunidade para o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, levar adiante uma agenda de ajuste fiscal mais robusta e impopular. Um ajuste que exigirá cortes estruturantes em despesas, inclusive em áreas tradicionalmente sensíveis para o PT.
As eleições municipais brasileiras revelaram uma reconfiguração no xadrez político nacional. Com a ascensão de partidos de centro e direita, que consolidaram hegemonia em cidades estratégicas, o governo Lula sai enfraquecido e com maior dificuldade para sustentar sua base de apoio no Congresso. Esse revés é duplamente complexo: além de comprometer a capacidade de articulação política, evidencia que a narrativa social e redistributiva tradicional da esquerda perdeu força em um Brasil marcado por crises econômicas, descrença institucional e, em certos segmentos, um retorno ao conservadorismo.
Paralelamente, o retorno de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, desta vez com domínio sobre o Congresso, traz consigo um cenário geopolítico de incertezas que pressiona diretamente os fundamentos econômicos de países emergentes como o Brasil. As previsões para a nova administração republicana indicam uma política comercial profundamente protecionista, marcada por tarifas punitivas contra a China e outros competidores, medidas que prometem desestabilizar as cadeias globais de valor. O protecionismo deverá provocar um aumento das tensões comerciais, pressionando a inflação nos Estados Unidos e forçando o Federal Reserve a manter ou elevar as taxas de juros. Para o Brasil, isso significa uma perspectiva de fuga de capitais, desvalorização do real e uma consequente elevação do risco-país.
Nesse contexto, o ajuste fiscal ganha um caráter urgente e indispensável para proteger os fundamentos macroeconômicos nacionais. Se antes o equilíbrio fiscal era um "desejável" nas palavras dos mais ortodoxos, agora se tornou um "imperativo". Haddad, ciente das resistências dentro do núcleo palaciano e de seu próprio partido, deve aproveitar o momento para reforçar sua posição. Com um cenário global adverso pressionando o câmbio e as expectativas inflacionárias, ele poderá apresentar um ajuste fiscal estrutural não apenas como uma recomendação técnica, mas como uma medida de sobrevivência econômica.
A tarefa, no entanto, não será simples. O governo de Lula, tradicionalmente comprometido com uma agenda social e com um apetite por gastos públicos substanciais, enfrentará resistência tanto interna quanto externa ao propor cortes em áreas consideradas prioritárias. Programas sociais, subsídios e desindexações de despesas obrigatórias estão no centro do debate, objeto de um confronto inevitável entre a ala mais pragmática e os setores mais ideológicos do PT.
Haddad, nesse ponto, parece ter encontrado um alinhamento estratégico com figuras-chave da base governista que antes ocupavam posições periféricas. O vice-presidente Geraldo Alckmin, por exemplo, emerge como um interlocutor essencial nas discussões econômicas mais estratégicas. Experiente e com vasta influência em São Paulo, estado que simbolizou o colapso da esquerda nas urnas, Alckmin traz ao governo uma leitura fria e objetiva dos desafios que se avizinham. Ele sabe que sem um esforço de ajuste fiscal consistente, os riscos econômicos podem corroer ainda mais a já desgastada popularidade do governo.
As dúvidas crescentes sobre o apetite e as condições de saúde de Lula para buscar um novo mandato adicionam um peso extra ao papel de Alckmin. O vice-presidente, ex-tucano com um histórico reconhecido de resiliência, paciência e lealdade, tem avançado em suas relações com o presidente, ocupando uma posição cada vez mais central no núcleo palaciano. A crescente presença do vice em fóruns internacionais, em parte devido às restrições impostas às viagens de Lula, reflete seu fortalecimento como representante do governo, consolidando-se como uma figura de estabilidade e articulador fundamental em momentos de complexidade política e econômica. Esse movimento confere a ele maior influência no desenho estratégico do governo, especialmente em momentos em que a condução política e econômica exige negociações hábeis e multilaterais.
Outro reforço no campo pragmático é a ministra do Planejamento, Simone Tebet, que, embora tenha sido discreta nos primeiros anos de governo, agora surge como uma defensora mais vocal de uma agenda de racionalização dos gastos públicos. A presença de Tebet e Alckmin ao lado de Haddad sinaliza, ainda que de forma incipiente, uma possível frente interna favorável à responsabilidade fiscal, mesmo que isso represente um enfrentamento com setores do partido e da base mais radical.
Do lado oposto, há uma corrente de pensamento, capitaneada por influentes quadros petistas e alguns setores do núcleo duro de Lula, que enxerga os recados das urnas de maneira distinta. Para esses atores, o fracasso nas eleições e a guinada conservadora dos Estados Unidos não deveriam empurrar o governo para o centro ou para um pragmatismo fiscalista, mas, ao contrário, forçar uma reconciliação mais profunda com suas bases sociais, reforçando o investimento em políticas públicas e na ampliação de programas sociais. Esse embate interno é, sem dúvida, um dos principais desafios para Haddad, que terá de construir pontes com o Congresso Nacional e negociar cortes de maneira minuciosa e estratégica.
A conjuntura internacional acrescenta um grau de complexidade que não pode ser ignorado. Se as tensões comerciais e a alta dos juros americanos se confirmarem, a política monetária brasileira será instada a agir. O Banco Central, que já opera com uma taxa de juros elevada, terá que manobrar entre a necessidade de conter a inflação e os riscos de um ajuste fiscal inadequado. Isso coloca ainda mais pressão sobre Haddad e reforça a necessidade de um ajuste que transmita credibilidade às agências de classificação de risco, que, até agora, vinham sustentando uma visão construtiva sobre o país.
O ajuste fiscal, portanto, transcende a questão econômica e adentra o campo político com uma carga de simbolismo e pragmatismo inédita. Haddad terá que manobrar com habilidade entre as demandas dos aliados pragmáticos, as pressões internas do PT e as exigências do mercado financeiro e das agências de risco. A implementação de cortes estruturais, a desindexação de despesas obrigatórias e a modulação dos gastos sociais são, simultaneamente, ferramentas e armadilhas que definirão o sucesso ou o fracasso do governo Lula em sua tentativa de manter a governabilidade até 2026.
A vitória de Trump, o fortalecimento do centro e da direita no Brasil, e a pressão econômica externa compõem um cenário de desafios múltiplos que, ironicamente, podem ser a oportunidade que Haddad precisa para deixar sua marca. Contudo, o risco é proporcional à recompensa: qualquer erro pode custar caro em termos de credibilidade política e estabilidade. O ajuste fiscal será, em última análise, um teste para o governo Lula, que terá de escolher entre o pragmatismo necessário e a retórica mais aderente à sua base.
Mas e a verborragia anti-mercado de Lula? O que significa?
A retórica do presidente, marcada pela narrativa de que não jogará o ajuste fiscal nas costas dos mais pobres, contrasta com a prática adotada pelo governo, que tem até agora mantido o compromisso com os parâmetros do novo arcabouço fiscal.
As medidas recentes de contingenciamento e cortes, incluindo ajustes implementados no início do segundo semestre, demonstram a sensibilidade do presidente aos apelos de Haddad em momentos de maior agitação do mercado e desconfiança internacional.
Essa dualidade é uma característica de Lula: embora não abdique de um populismo retórico que lhe é familiar e que fala diretamente às suas bases, ele tem, nos momentos críticos, cedido à necessidade de ajustes mais técnicos e austeros para assegurar a estabilidade econômica. A tendência é a de que, apesar do barulho, os adultos na sala vençam a contenda e algum ajuste saia do papel. Evidentemente que não com a potência desejada pelo mercado, mas em patamares suficientes para uma virada de ano menos turbulenta.
O governo Lula experimenta uma “tempestade perfeita” com a junção de desafios políticos e econômicos, desenhada tanto pela derrota da esquerda nas recentes eleições municipais quanto pelo impacto global da maiúscula vitória de Donald Trump nos Estados Unidos. Este cenário adverso, que teria todos os ingredientes para tornar ainda mais árdua a missão do Planalto, paradoxalmente oferece uma rara janela de oportunidade para o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, levar adiante uma agenda de ajuste fiscal mais robusta e impopular. Um ajuste que exigirá cortes estruturantes em despesas, inclusive em áreas tradicionalmente sensíveis para o PT.
As eleições municipais brasileiras revelaram uma reconfiguração no xadrez político nacional. Com a ascensão de partidos de centro e direita, que consolidaram hegemonia em cidades estratégicas, o governo Lula sai enfraquecido e com maior dificuldade para sustentar sua base de apoio no Congresso. Esse revés é duplamente complexo: além de comprometer a capacidade de articulação política, evidencia que a narrativa social e redistributiva tradicional da esquerda perdeu força em um Brasil marcado por crises econômicas, descrença institucional e, em certos segmentos, um retorno ao conservadorismo.
Paralelamente, o retorno de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, desta vez com domínio sobre o Congresso, traz consigo um cenário geopolítico de incertezas que pressiona diretamente os fundamentos econômicos de países emergentes como o Brasil. As previsões para a nova administração republicana indicam uma política comercial profundamente protecionista, marcada por tarifas punitivas contra a China e outros competidores, medidas que prometem desestabilizar as cadeias globais de valor. O protecionismo deverá provocar um aumento das tensões comerciais, pressionando a inflação nos Estados Unidos e forçando o Federal Reserve a manter ou elevar as taxas de juros. Para o Brasil, isso significa uma perspectiva de fuga de capitais, desvalorização do real e uma consequente elevação do risco-país.
Nesse contexto, o ajuste fiscal ganha um caráter urgente e indispensável para proteger os fundamentos macroeconômicos nacionais. Se antes o equilíbrio fiscal era um "desejável" nas palavras dos mais ortodoxos, agora se tornou um "imperativo". Haddad, ciente das resistências dentro do núcleo palaciano e de seu próprio partido, deve aproveitar o momento para reforçar sua posição. Com um cenário global adverso pressionando o câmbio e as expectativas inflacionárias, ele poderá apresentar um ajuste fiscal estrutural não apenas como uma recomendação técnica, mas como uma medida de sobrevivência econômica.
A tarefa, no entanto, não será simples. O governo de Lula, tradicionalmente comprometido com uma agenda social e com um apetite por gastos públicos substanciais, enfrentará resistência tanto interna quanto externa ao propor cortes em áreas consideradas prioritárias. Programas sociais, subsídios e desindexações de despesas obrigatórias estão no centro do debate, objeto de um confronto inevitável entre a ala mais pragmática e os setores mais ideológicos do PT.
Haddad, nesse ponto, parece ter encontrado um alinhamento estratégico com figuras-chave da base governista que antes ocupavam posições periféricas. O vice-presidente Geraldo Alckmin, por exemplo, emerge como um interlocutor essencial nas discussões econômicas mais estratégicas. Experiente e com vasta influência em São Paulo, estado que simbolizou o colapso da esquerda nas urnas, Alckmin traz ao governo uma leitura fria e objetiva dos desafios que se avizinham. Ele sabe que sem um esforço de ajuste fiscal consistente, os riscos econômicos podem corroer ainda mais a já desgastada popularidade do governo.
As dúvidas crescentes sobre o apetite e as condições de saúde de Lula para buscar um novo mandato adicionam um peso extra ao papel de Alckmin. O vice-presidente, ex-tucano com um histórico reconhecido de resiliência, paciência e lealdade, tem avançado em suas relações com o presidente, ocupando uma posição cada vez mais central no núcleo palaciano. A crescente presença do vice em fóruns internacionais, em parte devido às restrições impostas às viagens de Lula, reflete seu fortalecimento como representante do governo, consolidando-se como uma figura de estabilidade e articulador fundamental em momentos de complexidade política e econômica. Esse movimento confere a ele maior influência no desenho estratégico do governo, especialmente em momentos em que a condução política e econômica exige negociações hábeis e multilaterais.
Outro reforço no campo pragmático é a ministra do Planejamento, Simone Tebet, que, embora tenha sido discreta nos primeiros anos de governo, agora surge como uma defensora mais vocal de uma agenda de racionalização dos gastos públicos. A presença de Tebet e Alckmin ao lado de Haddad sinaliza, ainda que de forma incipiente, uma possível frente interna favorável à responsabilidade fiscal, mesmo que isso represente um enfrentamento com setores do partido e da base mais radical.
Do lado oposto, há uma corrente de pensamento, capitaneada por influentes quadros petistas e alguns setores do núcleo duro de Lula, que enxerga os recados das urnas de maneira distinta. Para esses atores, o fracasso nas eleições e a guinada conservadora dos Estados Unidos não deveriam empurrar o governo para o centro ou para um pragmatismo fiscalista, mas, ao contrário, forçar uma reconciliação mais profunda com suas bases sociais, reforçando o investimento em políticas públicas e na ampliação de programas sociais. Esse embate interno é, sem dúvida, um dos principais desafios para Haddad, que terá de construir pontes com o Congresso Nacional e negociar cortes de maneira minuciosa e estratégica.
A conjuntura internacional acrescenta um grau de complexidade que não pode ser ignorado. Se as tensões comerciais e a alta dos juros americanos se confirmarem, a política monetária brasileira será instada a agir. O Banco Central, que já opera com uma taxa de juros elevada, terá que manobrar entre a necessidade de conter a inflação e os riscos de um ajuste fiscal inadequado. Isso coloca ainda mais pressão sobre Haddad e reforça a necessidade de um ajuste que transmita credibilidade às agências de classificação de risco, que, até agora, vinham sustentando uma visão construtiva sobre o país.
O ajuste fiscal, portanto, transcende a questão econômica e adentra o campo político com uma carga de simbolismo e pragmatismo inédita. Haddad terá que manobrar com habilidade entre as demandas dos aliados pragmáticos, as pressões internas do PT e as exigências do mercado financeiro e das agências de risco. A implementação de cortes estruturais, a desindexação de despesas obrigatórias e a modulação dos gastos sociais são, simultaneamente, ferramentas e armadilhas que definirão o sucesso ou o fracasso do governo Lula em sua tentativa de manter a governabilidade até 2026.
A vitória de Trump, o fortalecimento do centro e da direita no Brasil, e a pressão econômica externa compõem um cenário de desafios múltiplos que, ironicamente, podem ser a oportunidade que Haddad precisa para deixar sua marca. Contudo, o risco é proporcional à recompensa: qualquer erro pode custar caro em termos de credibilidade política e estabilidade. O ajuste fiscal será, em última análise, um teste para o governo Lula, que terá de escolher entre o pragmatismo necessário e a retórica mais aderente à sua base.
Mas e a verborragia anti-mercado de Lula? O que significa?
A retórica do presidente, marcada pela narrativa de que não jogará o ajuste fiscal nas costas dos mais pobres, contrasta com a prática adotada pelo governo, que tem até agora mantido o compromisso com os parâmetros do novo arcabouço fiscal.
As medidas recentes de contingenciamento e cortes, incluindo ajustes implementados no início do segundo semestre, demonstram a sensibilidade do presidente aos apelos de Haddad em momentos de maior agitação do mercado e desconfiança internacional.
Essa dualidade é uma característica de Lula: embora não abdique de um populismo retórico que lhe é familiar e que fala diretamente às suas bases, ele tem, nos momentos críticos, cedido à necessidade de ajustes mais técnicos e austeros para assegurar a estabilidade econômica. A tendência é a de que, apesar do barulho, os adultos na sala vençam a contenda e algum ajuste saia do papel. Evidentemente que não com a potência desejada pelo mercado, mas em patamares suficientes para uma virada de ano menos turbulenta.