A viagem fatal dos Estados vermelhos dos EUA
A divisão política da América, cada vez mais, é também uma divisão econômica
Da Redação
Publicado em 12 de dezembro de 2019 às 13h21.
Última atualização em 12 de dezembro de 2019 às 16h12.
“E pluribus unum” — de muitos, um — é um dos lemas tradicionais da América. E é de se imaginar que haveria reflexos dele na realidade. Nós não estamos, afinal de contas, unidos apenas do ponto de vista político. Compartilhamos uma linguagem comum; a movimentação irrestrita de bens, serviços e pessoas é garantida pela Constituição. Será que isso não deveria levar a uma convergência no modo como nós americanos vivemos e pensamos?
De fato, as últimas décadas têm sido marcadas por uma divergência crescente em vários aspectos entre regiões, todas correlacionadas de uma maneira muito próxima. A divisão política da América, cada vez mais, é também uma divisão econômica. Como apontou Tom Edsall, do New York Times, em um artigo recente, “os eleitores vermelhos e azuis vivem em economias diferentes”.
O que Edsall não apontou é que os eleitores vermelhos e azuis não apenas vivem de modos diferentes; eles também morrem de modos diferentes.
Quanto à parte da vida: regiões azuis, com preferência pelo candidatos democratas, costumavam ser parecidas às regiões com preferência republicana, ou vermelhas, em termos de produtividade, renda e educação. Porém, as duas têm se distanciado rapidamente, com as regiões azuis se tornando mais produtivas, mais ricas e melhor educadas. Na estreita eleição presidencial de 2000, os Estados que apoiavam Al Gore, o democrata, em vez de George W. Bush representavam só um pouco mais de metade da produção econômica do país. Na estreita eleição de 2016, os Estados que apoiavam Hillary Clinton representavam 64% da produção, quase o dobro da parcela daqueles no país de Trump.
A questão é que a divisão americana azul e vermelha não tem a ver só com dinheiro. Também é, cada vez mais, uma questão de vida e morte.
Nos anos Bush eu costumava encontrar pessoas que insistiam que os Estados Unidos tinham a maior expectativa de vida do mundo. São pessoas que não tinham olhado os dados; elas só presumiram que a América fosse Número 1 em tudo. Mesmo naquela época isso não era verdade: a expectativa de vida americana tem estado abaixo da de outros países desenvolvidos há um bom tempo.
A disparidade na taxa de mortalidade tem aumentado de modo significativo nos últimos anos, como resultado de uma mortalidade maior entre os americanos aptos a trabalhar. Este aumento na mortalidade, por sua vez, tem sido na maioria dos casos uma consequência da alta nas chamadas mortes por desespero: overdoses causadas por drogas, suicídios e mortes associadas ao consumo de álcool. Além disso, o aumento destas mortes está levando a uma queda generalizada na expectativa de vida americana nos últimos anos.
O que eu não tenho visto enfatizarem é a divergência entre a expectativa de vida no interior dos Estados Unidos, e sua correlação próxima com a orientação política. É verdade que um artigo recente do New York Times sobre o fenômeno apontou que a expectativa de vida nas regiões metropolitanas costeiras continua aumentando tão depressa quanto a expectativa de vida em outros países desenvolvidos. Mas a divisão regional vai muito mais além disso.
Um artigo de 2018 do Jornal da Associação Americana de Medicina observou as mudanças na saúde e na expectativa de vida de 50 Estados entre 1990 e 2016. A divergência entre eles é notável. E, como eu disse, está intimamente ligada à orientação política.
Eu comparei os Estados que votaram em Donald Trump com os que votaram em Hillary Clinton em 2016 e calculei a expectativa média de vida, comparada aos dados demográficos de 2016. Em 1990, os moradores dos atuais Estados vermelho e azul tinham quase a mesma expectativa de vida. Desde então, contudo, a expectativa de vida nos Estados que votaram em Clinton cresceu mais ou menos alinhada àquela dos outros países desenvolvidos, comparado ao ganho quase zero no país de Trump. A essa altura, os moradores dos Estados azuis podem esperar viver mais de quatro anos mais do que seus equivalentes nos Estados vermelhos.
O que se trata aqui são só as mortes por desespero no coração da região oriental? Não. Peguem como exemplo os quatro Estados mais populosos da América. Em 1990, o Texas e a Flórida tinham números de expectativa de vida maiores do que Nova York e quase empatavam com os dados da Califórnia; hoje, eles estão muito atrás.
O que explica essa divergência? As políticas públicas certamente têm algum papel nisso, em particular nos últimos anos, à medida que os Estados azuis ampliaram a cobertura do Medicaid e reduziram drasticamente o número de pessoas descobertas pelo plano, enquanto a maioria dos Estados vermelhos não o fez. A distância crescente nos níveis educacionais decerto também teve seu papel: Pessoas melhor educadas tendem a ser mais saudáveis que as menos educadas.
Fora isso, está havendo um contraste notável nos comportamentos e estilos de vida que pode estar afetando a mortalidade. Por exemplo, a prevalência de obesidade vem disparando em toda a América desde 1990, mas os índices de obesidade são significativamente maiores nos Estados vermelhos.
Uma coisa que está clara é que os fatos são inteiramente inconsistentes com o diagnóstico conservador do que afeta a América.
Personalidades conservadoras como William Barr, o procurador-geral, olham para a mortalidade crescente e a atribuem ao colapso dos valores tradicionais – ruína que eles atribuem, por sua vez, às manobras maléficas de “secularistas militantes”. O assalto secularista nos valores tradicionais, afirma Barr, está por trás dos “índices de suicídio em disparada”, da violência crescente e de uma “mortal epidemia de drogas”.
Porém, os países europeus, que são muito mais secularistas do que nós, não estão passando por um aumento comparável nas mortes por desespero ou por uma queda na expectativa de vida semelhante à dos EUA. E mesmo na América estes males se concentram nos Estados que votaram em Trump, e em grande medida estão superando os Estados azuis mais seculares.
Ou seja, com certeza há algo de errado com a sociedade americana. Só que há um erro no diagnóstico conservador desse problema — um erro mortal.
“E pluribus unum” — de muitos, um — é um dos lemas tradicionais da América. E é de se imaginar que haveria reflexos dele na realidade. Nós não estamos, afinal de contas, unidos apenas do ponto de vista político. Compartilhamos uma linguagem comum; a movimentação irrestrita de bens, serviços e pessoas é garantida pela Constituição. Será que isso não deveria levar a uma convergência no modo como nós americanos vivemos e pensamos?
De fato, as últimas décadas têm sido marcadas por uma divergência crescente em vários aspectos entre regiões, todas correlacionadas de uma maneira muito próxima. A divisão política da América, cada vez mais, é também uma divisão econômica. Como apontou Tom Edsall, do New York Times, em um artigo recente, “os eleitores vermelhos e azuis vivem em economias diferentes”.
O que Edsall não apontou é que os eleitores vermelhos e azuis não apenas vivem de modos diferentes; eles também morrem de modos diferentes.
Quanto à parte da vida: regiões azuis, com preferência pelo candidatos democratas, costumavam ser parecidas às regiões com preferência republicana, ou vermelhas, em termos de produtividade, renda e educação. Porém, as duas têm se distanciado rapidamente, com as regiões azuis se tornando mais produtivas, mais ricas e melhor educadas. Na estreita eleição presidencial de 2000, os Estados que apoiavam Al Gore, o democrata, em vez de George W. Bush representavam só um pouco mais de metade da produção econômica do país. Na estreita eleição de 2016, os Estados que apoiavam Hillary Clinton representavam 64% da produção, quase o dobro da parcela daqueles no país de Trump.
A questão é que a divisão americana azul e vermelha não tem a ver só com dinheiro. Também é, cada vez mais, uma questão de vida e morte.
Nos anos Bush eu costumava encontrar pessoas que insistiam que os Estados Unidos tinham a maior expectativa de vida do mundo. São pessoas que não tinham olhado os dados; elas só presumiram que a América fosse Número 1 em tudo. Mesmo naquela época isso não era verdade: a expectativa de vida americana tem estado abaixo da de outros países desenvolvidos há um bom tempo.
A disparidade na taxa de mortalidade tem aumentado de modo significativo nos últimos anos, como resultado de uma mortalidade maior entre os americanos aptos a trabalhar. Este aumento na mortalidade, por sua vez, tem sido na maioria dos casos uma consequência da alta nas chamadas mortes por desespero: overdoses causadas por drogas, suicídios e mortes associadas ao consumo de álcool. Além disso, o aumento destas mortes está levando a uma queda generalizada na expectativa de vida americana nos últimos anos.
O que eu não tenho visto enfatizarem é a divergência entre a expectativa de vida no interior dos Estados Unidos, e sua correlação próxima com a orientação política. É verdade que um artigo recente do New York Times sobre o fenômeno apontou que a expectativa de vida nas regiões metropolitanas costeiras continua aumentando tão depressa quanto a expectativa de vida em outros países desenvolvidos. Mas a divisão regional vai muito mais além disso.
Um artigo de 2018 do Jornal da Associação Americana de Medicina observou as mudanças na saúde e na expectativa de vida de 50 Estados entre 1990 e 2016. A divergência entre eles é notável. E, como eu disse, está intimamente ligada à orientação política.
Eu comparei os Estados que votaram em Donald Trump com os que votaram em Hillary Clinton em 2016 e calculei a expectativa média de vida, comparada aos dados demográficos de 2016. Em 1990, os moradores dos atuais Estados vermelho e azul tinham quase a mesma expectativa de vida. Desde então, contudo, a expectativa de vida nos Estados que votaram em Clinton cresceu mais ou menos alinhada àquela dos outros países desenvolvidos, comparado ao ganho quase zero no país de Trump. A essa altura, os moradores dos Estados azuis podem esperar viver mais de quatro anos mais do que seus equivalentes nos Estados vermelhos.
O que se trata aqui são só as mortes por desespero no coração da região oriental? Não. Peguem como exemplo os quatro Estados mais populosos da América. Em 1990, o Texas e a Flórida tinham números de expectativa de vida maiores do que Nova York e quase empatavam com os dados da Califórnia; hoje, eles estão muito atrás.
O que explica essa divergência? As políticas públicas certamente têm algum papel nisso, em particular nos últimos anos, à medida que os Estados azuis ampliaram a cobertura do Medicaid e reduziram drasticamente o número de pessoas descobertas pelo plano, enquanto a maioria dos Estados vermelhos não o fez. A distância crescente nos níveis educacionais decerto também teve seu papel: Pessoas melhor educadas tendem a ser mais saudáveis que as menos educadas.
Fora isso, está havendo um contraste notável nos comportamentos e estilos de vida que pode estar afetando a mortalidade. Por exemplo, a prevalência de obesidade vem disparando em toda a América desde 1990, mas os índices de obesidade são significativamente maiores nos Estados vermelhos.
Uma coisa que está clara é que os fatos são inteiramente inconsistentes com o diagnóstico conservador do que afeta a América.
Personalidades conservadoras como William Barr, o procurador-geral, olham para a mortalidade crescente e a atribuem ao colapso dos valores tradicionais – ruína que eles atribuem, por sua vez, às manobras maléficas de “secularistas militantes”. O assalto secularista nos valores tradicionais, afirma Barr, está por trás dos “índices de suicídio em disparada”, da violência crescente e de uma “mortal epidemia de drogas”.
Porém, os países europeus, que são muito mais secularistas do que nós, não estão passando por um aumento comparável nas mortes por desespero ou por uma queda na expectativa de vida semelhante à dos EUA. E mesmo na América estes males se concentram nos Estados que votaram em Trump, e em grande medida estão superando os Estados azuis mais seculares.
Ou seja, com certeza há algo de errado com a sociedade americana. Só que há um erro no diagnóstico conservador desse problema — um erro mortal.