(Sergey Shulgin/Getty Images)
Paradigma Education
Publicado em 24 de fevereiro de 2021 às 16h13.
Última atualização em 24 de fevereiro de 2021 às 16h33.
A infância do bitcoin acabou. Os nerds estavam certos. A criptomoeda fascina CEOs de empresas do S&P 500, fundos multibilionários e banqueiros centrais. Muito se fala que o ativo deve ser domesticado, daqui em diante. O senso comum alerta: o upside não é mais o mesmo de alguns anos atrás. Prescreve que a volatilidade deve diminuir. Que os ciclos devem ser mais demorados, menos violentos.
Este texto apresenta o outro lado da moeda: o bitcoin virou adolescente, sim. Mas é agora que começa a incomodar de verdade.
DrawDown da máxima histórica X Dias até uma nova máxima | O 3º ciclo do BTC foi mais curto que o 2º. Não "deveria" ser mais extenso e vagaroso?
Mudanças de paradigma costumam parecer inevitáveis, em retrospecto. Como se acontecessem do dia para a noite.
Cada vez mais gente enxerga a invenção de Satoshi Nakamoto como tal. Mas não foi sempre assim.
A interpretação predominante sobre a trajetória da criptomoeda já mudou inúmeras vezes. Até hoje, em alguns cantos obscuros da internet, ainda se encontra quem compare o fenômeno a tulipas e outras modas passageiras.
Este é o modelo mental do negacionista típico, amplamente difundido entre 2010 e 2014.
No século 17, surgiram mercados à vista para negociar tulipas, na Holanda. O negócio se provou lucrativo. Um mero bulbo da flor chegou a valer o equivalente a 24 toneladas de trigo.
Quando, décadas depois, introduziu-se mercados futuros, ficou evidente que a demanda era maior que a capacidade de produção. E o setor colapsou.
Tulipas subiram uma vez. E caíram uma vez.
O bitcoin já morreu e renasceu mais de 300 vezes.
Compare a derrocada das tulipas com o histórico de preços do bitcoin para aniquilar a semelhança proposta por essa narrativa num piscar de olhos.
Preço histórico do BTC ('10-'17) versus duas bolhas famosas. Fonte: James Todaro / BlockTown
Em 2013, um usuário do reddit regrediu linearmente preços do bitcoin e projetou o futuro extrapolando uma exponencial — um canal reto (em escala log) para cima e para a direita. O BTC escaparia desse corredor em seguida, obsoletando a previsão.
Em 2014, outro redditiano evoluiu para uma regressão não-linear. Propôs uma curva logarítmica para projetar a evolução futura do BTC. Isto é, uma subida que desacelera conforme se aproxima de um limite.
Esta forma de regressão é uma das mais populares entre analistas hoje, ainda que seus parâmetros tenham sido adaptados com o tempo.
O cenário alternativo — desconsiderado pelos modelos acima — é o de que a curva de adoção do bitcoin está traçando a forma de um S. Não se trata de uma anatomia desconhecida. É resultado de uma regressão logística: usada tipicamente para modelar o crescimento incontido de uma população, até que exaurido pela indisponibilidade de mais recursos.
É o rumo pelo qual a TV, a internet e os smartphones conquistaram o planeta. Assim como tantas outras tecnologias que começaram como brincadeira e mudaram o curso da história.
Gradualmente, até que… de repente!
Se o bitcoin estiver seguindo uma curva de adoção em S, a maneira como a perceberíamos variaria com o tempo.
Este último período, no caso do bitcoin, representaria o "começo do fim" do padrão dólar. O preço da criptomoeda cresceria indefinidamente.
Não significa que 1 BTC vá se tornar capaz de comprar todos os bens e serviços do mundo; só significa que o USD hiperinflou. Que o denominador não presta mais. Que o BTC virou unidade de conta.
Este rascunho projeta arbitrariamente o “ponto de inflexão” no final da década de 20, o que importa é o formato da curva. Fonte: S. Barbour
Boa parte da população mundial ainda ri de uma hipótese como essa. As seções seguintes são escritas para quem já passou desse ponto. Já se acostumou com o desdém do mainstream, depois de uma década memetizando essa profecia em realidade. Para quem está mais interessado(a) na pergunta:
O exemplo ao qual profetas da "hiperbitcoinização" geralmente recorrem é o da Alemanha de Weimar. O caso mais famoso de colapso da moeda governamental na literatura recente.
Assolado pela inflação rampante e pelo alto endividamento, o governo tentou "imprimir" sua saída para a crise. Trabalhadores precisavam ser pagos duas vezes ao dia porque, na hora do almoço, o salário da manhã já valia muito menos. Apostar na bolsa era um imperativo para não se perder poder de compra.
O que Michael Saylor, CEO da MicroStrategy, está fazendo hoje — ao tomar bilhões de dólares a 0% (!) para comprar BTC — é análogo ao que os Stinnes fizeram na década de 20, sugando todo o crédito ao qual tinham acesso, em marcos alemães, para acumular ouro antes do colapso da República.
"Pessoas ficavam raivosas por não terem aderido ao dinheiro fácil das bolsas; olhando, mas não conseguindo entrar. A taxa de criminalidade disparou. A especulação tornou-se um hobby nacional. Todos, do ascensorista até a elite, apostavam no mercado. Os volumes na Bolsa de Berlim superaram a capacidade da indústria de acompanhar a papelada … e a Bolsa foi obrigada a fechar vários dias por semana para varrer trabalho acumulado. Todos os marcos que existiam no mundo no verão de 1922 não valiam o suficiente, em novembro de 1923, pra comprar uma única passagem de bonde". Fonte: When Money Dies |Fonte do gráfico: PlanB
Hoje, o custo do crédito é duas ordens de magnitude menor do que o retorno histórico de se deter BTC. O apelo de se alavancar é proporcional às expectativas de que o passivo vá diminuir em termos nominais — ou seja, se espera-se que a inflação seja maior que a taxa de juros.
Neste ponto, cada vez mais gente empresta moeda fraca para comprar moeda forte. O feedback cíclico entre a inflação de moedas governamentais e a deflação do BTC catalisa um processo (até hoje teórico) de "hiperbitcoinização".
Um insight importante nessa heurística é o de que o propulsor da criptomoeda são as crises em moedas fiduciárias causadas por investidores, não a aprovação de jornalistas ou a adoção de "consumidores mainstream".
A ideia dos "ataques especulativos" é antiga no cânone bitcoiniano. A proliferação deles seria sinal de que "o ponto de inflexão" é iminente.
Não é porque Michael Saylor está seguindo a cartilha à risca que o "momento chegou". Pelo contrário. Você vai saber que a coisa ficou séria conforme Saylor não for mais taxado de louco entre seus colegas.
Quando "louco" for quem não estiver fazendo o mesmo.
Em 2021, o homem mais rico do mundo comprou 1,5 bilhão de dólares em bitcoin. O Morgan Stanley pediu pra abrir um ETF de bitcoin. A BlackRock criou uma divisão pra investir no tema. Braços do Fed estão ativamente pesquisando sobre DeFi.
Ninguém segura o dinheiro mágico da internet. Arte: Jumos
A maior potência da Terra está endividada até as calças. Para cada dólar de riqueza produzida, 1,3 dólar precisa ser pago para credores.
Aumentar os juros básicos acarreta mais encargos financeiros, e sufoca o resto do orçamento. Por outro lado, manter as taxas praticamente zeradas depois da explosão monetária mais conspícua da história recente significa escancarar as portas para a inflação.
O Fed está entre a cruz e a espada; não é de hoje.
A dinâmica do jogo é clara desde a última grande crise.
O cidadão comum pode deixar seu capital em (1) uma moeda condenada à corrosão do poder de compra; alocá-lo em (2) títulos de perda fixa (literalmente); ou despejar grana no (3) moto perpétuo do mercado de ações, surfando preços mantidos nas alturas por juros negligíveis e políticas monetárias permissivas.
No caso das ações, tem de tomar cuidado para não ficar "no lado errado do trade", ocasião em que a corretora pode te impedir de operar do dia pra noite.
Se estiver do lado certo, deduza 25% da conta (40%, no caso do real) já que o denominador vem inflando a um ritmo desproporcional a qualquer coisa que sua geração já viu.
Sabe a metáfora do rato que corre dentro de uma rodinha? Pois a rodinha girou 10 vezes mais rápido em 2020 do que em 2019.
A ascensão de um dinheiro credivelmente neutro é o sinal de uma nova ordem em que cada vez menos agentes soberanos se dispõem a carregar o débito americano nas costas em troca de uma vaga no barco do dólar. Em que entre um império em dissolução e uma ditadura emergente, talvez valha apostar numa terceira via.
Em que a diferença entre uma ação e um token se torna irrisória. Em que o entretenimento se mistura com o investimento. Millenials comandam mais capital do que boomers. Em que um fórum obscuro tem mais poder que o maior market maker do planeta. Um líder anônimo tem seguidores mais ávidos que os de qualquer profeta. E fazer parte de um enxame de vespas cibernéticas tem mais apelo que qualquer sabor de patriotismo.
A ira dos economistas que vilanizam o bitcoin é contraponto irônico à natureza pacífica da criptomoeda. O mundo não conseguiu concordar sobre fazer um lockdown simultâneo; ou sobre se juntar para combater o aquecimento global — mobilizar autoridades para se preocupar com a criptomoeda é tão ingênuo quanto fútil.
Se o bitcoin ameaça um governo, significa que é aliado de outro.
Não existe solução política para os dilemas centrais entre as visões de mundo que se digladiam pelo trono da arena global. A demanda por uma plataforma apolítica de negócios nunca foi tão latente.
O bitcoin saiu da infância, e o tratamento zombeteiro do status quo se transformará em combate altivo. Primeiro, eles te ignoram. Depois, o bicho pega.
Não se deixe inflamar pelos hereges. Neste jogo, o único movimento vencedor é não jogar. Desconfie de quem confunde o ímpeto do bitcoin com violência.
Ele não é uma espada com a qual enfrentar o Minotauro. É só um novelo de linha indicando a saída do labirinto.