Por que um museu em Campos do Jordão é tão importante para o antigomobilismo nacional
A instituição, cuja sigla condensa carro, arte, design e educação, conta a hist´ria do Brasil por meio de um acervo de mais de 500 automóveis
Publicado em 30 de novembro de 2024 às, 07h30.
Desde 2016, quando a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) reconheceu o veículo antigo como patrimônio cultural da humanidade, a dimensão e a relevância do antigomobilismo elevaram-se. No Brasil inclusive.
Na última quinta-feira (28), a inauguração do museu Carde laureou uma sequência de conquistas para este reduto segmento, que recentemente incluem, por exemplo, um assento na Câmara Temática de Assuntos Veiculares e Ambientais do Contran, a reedição de um concurso de elegância e o 1º Congresso Brasileiro de Antigomobilismo.
Dentro de um terreno de 200 mil metros quadrados em Campos do Jordão, em São Paulo, o museu cuja sigla condensa carro, arte, design e educação se impõe como um oásis em meio a centenas de araucárias. Um oásis não apenas automotivo – como seu acervo de mais de 500 automóveis sugere –, mas também histórico, artístico e cultural. Soa como devaneio?
“O Carde é diferente de qualquer outro museu do mundo, pois destaca a história do automóvel contextualizada em seus diferentes períodos através da arte pictórica, da escultura, da arquitetura, do mobiliário antigo e do design. Mas também e sobretudo através da história sócio-política do mundo e do Brasil, graças a fabulosos arquivos projetados para o visitante em gigantescas paredes de LED”, declarou a esta coluna de EXAME Casual Matthieu Lamoure, que na condição de diretor-geral da Artcurial Motorcars, uma das principais casas de leilão do mundo, tem dimensão precisa do cenário mundial do antigomobilismo.
O que Lamoure quer dizer é que o visitante que desembolsar 120 reais pelo ingresso poderá contemplar cenas tanto únicas quanto díspares, como um Brasinca Uirapuru 1964 na copa de um cajueiro embrulhado por folhas de crochê a poucos metros de um Isotta Fraschini Tipo 8A 1925 ambientado numa réplica do Parque Lage, no Rio de Janeiro. O fora-de-série está ali por obra dos artistas plásticos indígenas Daiara Tukano, Rudá Jenipapo e Caripoune Yermollay; o suntuoso modelo italiano foi presente de Henrique Lage, um dos brasileiros mais ricos nos anos 1920, à sua esposa e cantora lírica Gabriella Besanzoni.
E quando cita “história sócio-política”, Lamoure deve estar se referindo à sala “O Desfile do Poder”, que reúne um Lincoln K Touring, um VW Fusca conversível e um Willys Itamaraty Executivo. O primeiro serviu como transporte de chefes de Estado em visitas ao Brasil, como Charles de Gaulle em 1964, príncipe Akihito do Japão em 1967 e papa João Paulo II em 1980; o segundo é aquele que conduziu Juscelino Kubitschek pela fábrica da Volkswagen na Via Anchieta durante sua inauguração, em novembro de 1959; e o terceiro é única limusine produzida por aqui, limitada a 27 unidades.
“Nenhum visitante, seja qual for a sua idade, origem, cultura, gênero ou religião pode ficar indiferente ao Carde. Graças a uma cenografia ao mesmo tempo inteligente e elegante, e que só poderia ser assinada por um artista talentoso como Gringo Cardia, rico na sua cultura internacional, na sua sensibilidade e na sua experiência no campo das artes, o automóvel é finalmente colocado no ranking de obra de arte, elevando-se ao mesmo patamar das artes consideradas até agora como principais”, acrescenta Lamoure.
Mudança de rota
Tudo começou em 2018, quando a filantropa Lia Maria Aguiar decidiu adquirir cerca de 100 exemplares da coleção de Og Pozzoli (1940 – 2017), um dos pioneiros do colecionismo de carros clássicos no Brasil, e doá-la à fundação que leva seu nome e se dedica a projetos socioculturais para crianças e jovens da cidade turística do interior de São Paulo. A ideia original, ser apenas um museu de automóveis, se transformou na metade do caminho.
“Não nos contentávamos apenas em manter a história dos automóveis, os considerando ali como um bem material, sem que as pessoas pudessem interagir, participar, entender, assimilar. Então fomos construindo essa ideia de estruturar o automóvel como sendo um elo entre história, arte, cultura e todas as questões sociais do nosso país”, explica Luiz Goshima, idealizador do projeto e diretor-executivo do Carde.
Daí um dos ambientes, “Os novos direitos e a consciência ambiental”, juntar esportivos nacionais como Escort XR3, Gol GTi e Kadett GS a obras de Frans Krajcberg e José Zanine Caldas. Ou originais de Candido Portinari e Di Cavalcanti emoldurarem um Chrysler Town and Country 1947, que ao lado de um Cadillac V16 1939 representam o estilo dos carros na Era Vargas.
Para Roberto Suga, ex-presidente da Federação Brasileira de Veículos Antigos (FBVA) e atualmente presidente do conselho consultivo da entidade, trata-se de “um conceito novo, que enxerga o carro antigo não apenas como hobby, mas como instrumento cultural e de demonstração da evolução da história da humanidade através do design, da arte e da cultura”.
Além do cenógrafo Gringo Cardia, foi escalada Heloisa Starling, professora titular de História do Brasil da Universidade Federal de Minas Gerais para a composição do primeiro andar do prédio de 6 mil m².
O segundo andar, sim, tem cara de museu de carro. No palco central estão superesportivos como Jaguar XJ220, Lamborghini Countach e Ferrari F50. Embora venham de épocas e carreguem estilos distintos, convivem harmoniosamente com De Dion-Bouton Type G 1902, o mais antigo do acervo. Do outro lado, um punhado de raridades da Volkswagen, como uma Kombi 1950 e um Fusca Hebmüller.
“A inauguração do Carde é um marco significativo para a preservação da história automotiva no Brasil e para a valorização do design e da cultura. Como uma marca que tem mais de sete décadas de história no Brasil, a Volkswagen reconhece a importância de iniciativas como essa, que ajudam a conectar gerações”, reflete Ciro Possobom, presidente e CEO da empresa alemã, que há três meses lançou uma página no Instagram e um podcast dedicados ao tema.
Novos mercados
Membro da terceira geração de uma das famílias mais tradicionais do antigomobilismo nacional, Maurício Marx destaca ainda outros papeis do museu: “Com a alta da procura por carros dos anos 1980 e 1990, os representantes dos anos 1920, 1930 e 1940, os chamados pré-guerra, foram esquecidos. O Carde resgata esses clássicos mais antigos. Um adolescente pode ver um Chevrolet Bel Air e o modelo virar o carro dos seus sonhos”.
Para o colecionador, há também a questão da formação de novos profissionais, já que o Carde mantém uma escola de restauração. “É notório que as oficinas de restauração estão enfrentando escassez de mão de obra. Então, o museu também tem o mérito de conectar esses jovens a um mercado totalmente aberto”, reflete Marx.
Únicas montadoras a investirem no mercado de clássicos no Brasil, Volkswagen e JLR também captaram a dimensão do Carde.
“Iniciativas como a do Carde contribuem para fomentar a cultura do antigomobilismo e, consequentemente, gerar oportunidades para um mercado que tem grande potencial no país”, resumiu Camila Yu Mateus, Diretora de Marketing da JLR. A empresa opera uma clínica de restauração de clássico das marcas Land Rover e Jaguar em Itatiaia, no Rio de Janeiro.