Renúncia de Jânio, que mudou o país, faz 60 anos hoje
Nesta mesma data, sessenta anos atrás, a história recente do Brasil começou a ser escrita
Bibiana Guaraldi
Publicado em 25 de agosto de 2021 às 12h41.
Aluizio Falcão Filho
Nesta mesma data, sessenta anos atrás, a história recente do Brasil começou a ser escrita. Em 25 de agosto de 1961, Jânio Quadros renunciou à presidência da República e jogou o país em uma crise política que só terminou em 31 de março de 1964. Com a ruptura do processo democrático, o Brasil passou 21 anos sob uma ditadura militar e esse jejum eleitoral criou distorções que hoje podem ser percebidas pelo nível de vários representantes do povo. Não que o Brasil fosse pródigo em termos de representatividade política antes da redemocratização – mas, ultimamente, percebe-se que a desfaçatez de uns e o viço autoritário de outros nos leva a um cenário preocupante e incerto.
Jânio vinha sendo constantemente desafiado pelo Congresso e, por isso, resolveu blefar em alto estilo: ele esperava que sua renúncia causasse pânico no Parlamento, já que os militares não viam com simpatia a ideia de ver João Goulart, seu vice, como presidente do país. Naquela época, uma regra esdrúxula permitia que se votasse para presidente no candidato de uma chapa e no vice de outra – por isso, Jango foi empossado como o primeiro nome da linha de sucessão. Havia até um slogan para que os eleitores sufragassem esses candidatos: era o chamado voto “Jan-Jan”.
O presidente achava que seria chamado de volta por deputados e senadores. No entanto, houve um silêncio total. Naquela época, como agora, o Congresso funcionava por consensos. E a maioria dos deputados acreditava que seria melhor encontrar uma solução institucional com Goulart do que enfrentar as maluquices de Jânio por mais três anos e pouco (quem costurou este entendimento no Congresso foi o então deputado mineiro José Maria Alkmin, parente distante do ex-governador Geraldo Alckmin).
É espantoso perceber que, seis décadas depois, vivemos um cenário político cheio de solavancos e incertezas. Dias atrás, publiquei um texto do jornalista David Nasser dirigido ao então presidente Quadros em março de 1961. O artigo deixa bem claro o flerte do mandatário com a ruptura institucional, algo que se comenta bastante no Brasil de 2021.
Em 24 de agosto, véspera da renúncia, o governador do antigo estado da Guanabara, Carlos Lacerda, foi à televisão e fez um duro pronunciamento contra JQ, acusando-o de armar um golpe e estabelecer-se no poder como um ditador. Foi a gota d’água para Jânio. Reza a lenda que ele estava alcoolizado quando decidiu desistir do Planalto – e muitos acham que, se ele tivesse sido trancado no banheiro por alguém, para que a porranca passasse, a história do Brasil seria outra.
A carta-renúncia mostra que os anseios de Jânio para o país podem ser considerados atuais: “Desejei um Brasil para os brasileiros, afrontando, nesse sonho, a corrupção, a mentira e a covardia que subordinam os interesses gerais aos apetites e às ambições de grupos ou indivíduos, inclusive do exterior. Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis levantam-se contra mim e me intrigam ou infamam, até com a desculpa de colaboração”.
Com o passar do tempo, as “forças terríveis” viraram “forças ocultas” na versão popular e Jânio ainda conseguiu se eleger, nos anos 1980, prefeito de São Paulo. Mas, naquele 25 de agosto, JQ acreditou que Jango não tomaria posse e ele seria chamado de volta. Na base aérea de Cumbica, onde fica hoje o aeroporto internacional de Guarulhos, ele diria para um assessor: “Não farei nada para voltar, mas considero minha volta inevitável”. Entrou, então, numa perua Vemaguet, com sua família e seguiu em direção ao Guarujá. Jamais foi chamado para retornar ao Planalto.
Quando Jânio renunciou, Goulart estava em viagem oficial na China. Quem tomou posse oficialmente foi o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, enquanto os três ministros militares publicaram uma nota conjunta afirmando que não aceitariam o vice no Palácio do Alvorada.
Goulart esticou a viagem ao exterior e o Congresso votou uma medida para transformar o sistema do governo em parlamentarista, reduzindo os poderes da presidência. Tancredo Neves foi eleito primeiro-ministro e a paz voltou por pouco a Brasília (depois, haveria um plebiscito que faria voltar o regime presidencialista e a instabilidade política, que culminou com a derrubada de Jango).
Essa situação pode ser creditada ao medo que havia na época em relação ao comunismo. Por conta disso e com o flerte de Goulart com as esquerdas, o movimento militar ganhou força e foi apoiado pelo empresariado e por boa parte da imprensa (pelo menos em seu momento inicial).
Como Jânio, Jair Bolsonaro é um presidente com hábitos folclóricos, eleito com um discurso calcado no combate à corrupção, na preservação da moral e dos bons costumes e na religiosidade (uma das medidas de JQ foi a proibição do uso de biquínis nas praias brasileiras). Pode-se ver mais uma semelhança entre os dois mandatários: a frequência dos rompantes emocionais. Mas há também enormes diferenças entre os dois. Jânio era culto e falava de forma empolada e difícil. Além disso, flertava ocasionalmente com a esquerda, como no episódio em que condecorou Che Guevara em Brasília – algo inimaginável para Bolsonaro.
Hoje, sessenta anos após a renúncia, enxergamos um cenário político que também combina tensões e desentendimentos entre os poderes constituídos. Trata-se de um panorama que provoca aplauso em alguns, revolta em outros e perplexidade em muitos. O fato é que não podemos deixar que exista uma escalada de ânimos que crie um rompimento com a democracia. A última coisa que desejamos, nessa hora, é termos de nos lembrar das palavras do poeta Belchior, imortalizadas na voz de Elis Regina e gravadas em 1976, em pleno governo Ernesto Geisel: “Minha dor é perceber/ Que apesar de termos feito tudo o que fizemos/ Ainda somos os mesmos/ E vivemos como os nossos pais”.
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Aluizio Falcão Filho
Nesta mesma data, sessenta anos atrás, a história recente do Brasil começou a ser escrita. Em 25 de agosto de 1961, Jânio Quadros renunciou à presidência da República e jogou o país em uma crise política que só terminou em 31 de março de 1964. Com a ruptura do processo democrático, o Brasil passou 21 anos sob uma ditadura militar e esse jejum eleitoral criou distorções que hoje podem ser percebidas pelo nível de vários representantes do povo. Não que o Brasil fosse pródigo em termos de representatividade política antes da redemocratização – mas, ultimamente, percebe-se que a desfaçatez de uns e o viço autoritário de outros nos leva a um cenário preocupante e incerto.
Jânio vinha sendo constantemente desafiado pelo Congresso e, por isso, resolveu blefar em alto estilo: ele esperava que sua renúncia causasse pânico no Parlamento, já que os militares não viam com simpatia a ideia de ver João Goulart, seu vice, como presidente do país. Naquela época, uma regra esdrúxula permitia que se votasse para presidente no candidato de uma chapa e no vice de outra – por isso, Jango foi empossado como o primeiro nome da linha de sucessão. Havia até um slogan para que os eleitores sufragassem esses candidatos: era o chamado voto “Jan-Jan”.
O presidente achava que seria chamado de volta por deputados e senadores. No entanto, houve um silêncio total. Naquela época, como agora, o Congresso funcionava por consensos. E a maioria dos deputados acreditava que seria melhor encontrar uma solução institucional com Goulart do que enfrentar as maluquices de Jânio por mais três anos e pouco (quem costurou este entendimento no Congresso foi o então deputado mineiro José Maria Alkmin, parente distante do ex-governador Geraldo Alckmin).
É espantoso perceber que, seis décadas depois, vivemos um cenário político cheio de solavancos e incertezas. Dias atrás, publiquei um texto do jornalista David Nasser dirigido ao então presidente Quadros em março de 1961. O artigo deixa bem claro o flerte do mandatário com a ruptura institucional, algo que se comenta bastante no Brasil de 2021.
Em 24 de agosto, véspera da renúncia, o governador do antigo estado da Guanabara, Carlos Lacerda, foi à televisão e fez um duro pronunciamento contra JQ, acusando-o de armar um golpe e estabelecer-se no poder como um ditador. Foi a gota d’água para Jânio. Reza a lenda que ele estava alcoolizado quando decidiu desistir do Planalto – e muitos acham que, se ele tivesse sido trancado no banheiro por alguém, para que a porranca passasse, a história do Brasil seria outra.
A carta-renúncia mostra que os anseios de Jânio para o país podem ser considerados atuais: “Desejei um Brasil para os brasileiros, afrontando, nesse sonho, a corrupção, a mentira e a covardia que subordinam os interesses gerais aos apetites e às ambições de grupos ou indivíduos, inclusive do exterior. Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis levantam-se contra mim e me intrigam ou infamam, até com a desculpa de colaboração”.
Com o passar do tempo, as “forças terríveis” viraram “forças ocultas” na versão popular e Jânio ainda conseguiu se eleger, nos anos 1980, prefeito de São Paulo. Mas, naquele 25 de agosto, JQ acreditou que Jango não tomaria posse e ele seria chamado de volta. Na base aérea de Cumbica, onde fica hoje o aeroporto internacional de Guarulhos, ele diria para um assessor: “Não farei nada para voltar, mas considero minha volta inevitável”. Entrou, então, numa perua Vemaguet, com sua família e seguiu em direção ao Guarujá. Jamais foi chamado para retornar ao Planalto.
Quando Jânio renunciou, Goulart estava em viagem oficial na China. Quem tomou posse oficialmente foi o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, enquanto os três ministros militares publicaram uma nota conjunta afirmando que não aceitariam o vice no Palácio do Alvorada.
Goulart esticou a viagem ao exterior e o Congresso votou uma medida para transformar o sistema do governo em parlamentarista, reduzindo os poderes da presidência. Tancredo Neves foi eleito primeiro-ministro e a paz voltou por pouco a Brasília (depois, haveria um plebiscito que faria voltar o regime presidencialista e a instabilidade política, que culminou com a derrubada de Jango).
Essa situação pode ser creditada ao medo que havia na época em relação ao comunismo. Por conta disso e com o flerte de Goulart com as esquerdas, o movimento militar ganhou força e foi apoiado pelo empresariado e por boa parte da imprensa (pelo menos em seu momento inicial).
Como Jânio, Jair Bolsonaro é um presidente com hábitos folclóricos, eleito com um discurso calcado no combate à corrupção, na preservação da moral e dos bons costumes e na religiosidade (uma das medidas de JQ foi a proibição do uso de biquínis nas praias brasileiras). Pode-se ver mais uma semelhança entre os dois mandatários: a frequência dos rompantes emocionais. Mas há também enormes diferenças entre os dois. Jânio era culto e falava de forma empolada e difícil. Além disso, flertava ocasionalmente com a esquerda, como no episódio em que condecorou Che Guevara em Brasília – algo inimaginável para Bolsonaro.
Hoje, sessenta anos após a renúncia, enxergamos um cenário político que também combina tensões e desentendimentos entre os poderes constituídos. Trata-se de um panorama que provoca aplauso em alguns, revolta em outros e perplexidade em muitos. O fato é que não podemos deixar que exista uma escalada de ânimos que crie um rompimento com a democracia. A última coisa que desejamos, nessa hora, é termos de nos lembrar das palavras do poeta Belchior, imortalizadas na voz de Elis Regina e gravadas em 1976, em pleno governo Ernesto Geisel: “Minha dor é perceber/ Que apesar de termos feito tudo o que fizemos/ Ainda somos os mesmos/ E vivemos como os nossos pais”.
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