Por que a imprensa não reclama do projeto das fake news?
O projeto contra as fake news não tem alcance direto junto àqueles que seguem os preceitos jornalísticos, o que reduz o interesse da imprensa nele
Publicado em 2 de julho de 2020 às, 08h25.
Desde que a discussão sobre o projeto de lei das fake news tomou conta do Senado, os jornalistas são instados a dar uma opinião contrária ao assunto. Críticos deste projeto afirmam que ele privilegia a censura e que isso, de alguma forma, irá respingar nos órgãos de comunicação mais à frente. O fato, porém, é que há um número ínfimo de reportagens, notas ou colunas na grande imprensa que critiquem a iniciativa. Por que os jornalistas, então, deram os ombros para o tema?
Para começar, a maior incidência de inverdades e incongruências não está exatamente nos órgãos que contam com jornalistas profissionais e sim em sites que simplesmente defendem uma determinada posição política, seja ela qual for. Neste jogo, em que uma suposta notícia vem recheada de silogismos e mentiras para provar determinado ponto de vista, os veículos de verdade não entram em campo.
Portanto, o projeto não tem alcance direto junto àqueles que seguem de fato os preceitos jornalísticos. Esse é um dos fatores que reduz o interesse da imprensa em relação ao projeto em si. Outra razão poderia ser a oposição feita ao PL pelo presidente Jair Bolsonaro e seu grupo de apoio político.
Boa parte da imprensa não apoia o governo e isso explicaria a reticência em ver tons de censura na proposta recém-aprovada pelo Senado. Quando se observa mais atentamente o projeto, percebe-se pontos positivos e negativos.
Começando pelo lado ruim: trata-se, em última análise, de uma tentativa de controle sobre as pessoas e seu direito de expressão. E um aspecto interessante do texto original, que privilegiava a investigação dos fundos financeiros por trás das publicações (o chamado “follow the money”), foi excluído da redação final.
A questão que se discute, no fundo, é: até onde deve ir a liberdade de expressão?
Um artigo recentemente publicado por Money Report, de autoria do economista Walter Williams, que faz parte do corpo de colaboradores do Instituto Mises Brasil, diz o seguinte: “o verdadeiro teste para se saber o comprometimento de uma pessoa para com a liberdade de expressão é ver se ela permite que outras pessoas digam coisas que ela considera profundamente ofensivas, seja sobre raça, gênero ou religião”.
Diante deste raciocínio, surge uma pergunta: como defender o direito de alguém usar expressões ofensivas, racistas ou preconceituosas? É necessário muito sangue frio para isso. Talvez os mais desavisados acreditem ser Williams um legítimo representante dos WASPs (brancos, anglo-saxões e protestantes) americanos para corroborar uma posição dessas. Ocorre que ele, professor da George Mason University, cresceu numa “housing Project” (uma espécie de “Minha casa, Minha Vida” americano) na Filadélfia e foi criado apenas pela mãe. E é negro.
No lado oposto do ringue, aqueles que acastelam o projeto afirmam haver uma melhora no processo de cancelamento de contas nas redes sociais.
Hoje, apenas uma denúncia é suficiente – desde que haja anuência do veículo – para fechar uma conta. Com o PL, entretanto, o denunciado terá direito à réplica e poderá defender o seu ponto de vista. Outro ponto contemplado pela proposta é a de exigir maior rigor no registro dos usuários – o que poderia atrapalhar a ação de identidades digitais falsas e a proliferação de robôs.
Uma fonte de discussões sobre a iniciativa é a respeito de quem poderia ou não arbitrar o que seriam fake news. O texto mostra que deverá ser formado um Conselho com a tarefa de redigir uma recomendação às redes sociais sobre o que seria ou não adequado no conteúdo das postagens. Repetindo: uma recomendação, não uma instrução direta.
O problema real, talvez, não esteja no conteúdo ofensivo das fake news em si, mas sim em seu método de proliferação. Um comentário inapropriado dito numa roda de malucos desaparece rapidamente. Mas, quando multiplicado numa rede, viraliza como rastilho de pólvora.
Os haters, de todas as espécies, utilizam-se do expediente de acionar exércitos de robôs para firmar uma posição. Ao criticar um político inimigo, por exemplo, o fazem em quantidades industriais, deixando seus oponentes atônitos e sem capacidade de reação, numa espécie de 7 X 1 digital. Neste pormenor, o projeto tenta criar uma fórmula que vai atrapalhar o surgimento de usuários fantasmas, utilizados para bombar certos assuntos.
Todavia, o que incomoda muitos oponentes do projeto é a proposta parecer uma defesa prévia de parlamentares e membros do Poder Judiciário – um anteparo de ataques virulentos que surgem através da rede. Ao tornar a ação dos haters mais difícil, o projeto também pode colocar amarras invisíveis nas críticas dos cidadãos comuns, que se sentiriam tolhidos em seu direito de admoestar autoridades.
É como naquela antiga polêmica sobre biografias não-autorizadas de músicos e cantores de música brasileira. Os artistas diziam que queriam proibir o trabalho de escritores independentes para se proteger de eventuais calúnias – mas, no fundo, também tencionavam se preservar das verdades inconvenientes que poderiam vir à tona nas pesquisas de seus biógrafos.
Essa questão azucrina o governo porque impede a ação de muitos de seus apoiadores. Traz desconforto aos liberais porque é mais uma ação das autoridades a regulamentar o que pode ou não pode fazer o cidadão. E desagrada o cidadão médio, que tem a impressão de que será vigiado por um Big Brother virtual daqui para frente.
A chance de tudo isso ser uma discussão inútil e não dar em nada, porém, é enorme. Bolsonaro já sinalizou ontem que o processo pode não passar na Câmara (lembremos que o Centrão, que o apoia, tem pelo menos 200 votos à disposição do presidente). Mas vamos supor que a proposta seja aprovada. Neste caso, o Planalto já deu sinais explícitos de que vai vetar a lei.
Assim sendo, estamos gastando saliva à toa? De maneira nenhuma. Estamos debatendo essas ideias para encontrar a melhor forma de colocar as fake news na mesma categoria de absurdos que ficaram restritos ao passado longínquo, como a escravidão de seres humanos e o direito ao voto restrito apenas aos homens. Excrescências como os vis ataques de haters e as falsidades divulgadas em massa pela rede são absurdos que precisam ser varridos de nosso convívio – mas principalmente por conta da conscientização de nossa sociedade, que precisa entender melhor e repudiar o discurso do ódio antes que seja tarde.