O grande dilema dos pais: como preparar filhos para os desafios da vida?
Cada residência enfrenta um tipo de desafio, como se vê nos diversos núcleos da minissérie “Little Fires Everywhere”
Da Redação
Publicado em 13 de agosto de 2021 às 08h59.
Aluizio Falcão Filho
A minissérie “Little Fires Everywhere”, exibida no Brasil na Amazon Prime, começa com a cena de uma casa pegando fogo. Sua dona, vivida por Reese Witherspoon (foto), está observado as labaredas que consomem sua propriedade com aquela expressão de incredulidade de quem vê seu lar devorado por um incêndio. A narrativa, então, vai retrocedendo em flashbacks de diversas datas passadas e vamos montando em nossa cabeça a explicação para aquela cena inicial.
Trata-se, antes de mais nada, de um enredo que tenta mostrar a maneira pela qual pais tratam e educam seusfilhos. Há todos os tipos de paternidade – desde a mulher branca endinheirada que deseja ter uma família de comercial de margarina até a imigrante chinesa ilegal que abandona seu bebê para que a menina seja adotada (e se arrepende). O elenco, repetindo uma fórmula atual, parece ter sido minuciosamente escolhido para representar uma diversidade racial longe da realidade, mas que parece ser hoje obrigatória nas produções de Hollywood ou de streaming – um tema talvez para discussão futura.
Este seriado, apesar de ambientado nos anos 1980 e 1990, reflete bastante o dilema enfrentado por pais e mães nos dias de hoje: até quando as famílias devem proporcionar conforto aos jovens, facilitando a solução de seus problemas? Ou seria melhor tornar suas vidas mais difíceis e treiná-los para dias mais duros? Outro problema: até quando podemos pressionar nossos filhos em busca de uma suposta perfeição? Mais que isso: temos o direito de tentar moldar os rebentos à nossa vontade e obrigá-los a seguir os nossos valores?
Estas dúvidas assolam praticamente todos as famílias de classe média e classe alta pelo planeta. Cada residência enfrenta um tipo de desafio, como se vê nos diversos núcleos da minissérie.
O conforto que as classes mais abastadas podem proporcionar aos seus jovens, por exemplo, foi algo que fez um amigo, dono de um grupo que fatura mais de R$ 4 bilhões, conversar comigo sobre o tema. Ele veio de uma família pobre e, desde cedo, ajudou o pai a cuidar de seu pequeno negócio. Sob sua batuta, aquele empreendimento cresceu e hoje atua em comércio e indústria.
A preocupação dele é encontrar o equilíbrio entre estimular a capacidade de seus filhos de crescer na vida e, ao mesmo tempo, proporcionar um certo conforto. A maioria dos pais quer suavizar o caminho que suas crianças terão de percorrer na vida. Mas isso está certo? Ao tornar tudo mais fácil para eles, não criaremos molengas que não saberão como lutar no futuro? Não necessariamente. No caso deste amigo, o filho mais velho, após arrumar um emprego, resolveu sair de casa, rachando um apartamento pequeno com um amigo, vivenciando uma queda expressiva em seu padrão de vida.
Mas há casos em que o conforto exagerado pode diminuir a garra de um filho rico. Há vários herdeiros por aí que perderam, aos poucos, a resiliência necessária para obter sucesso próprio e hoje vivem apenas de rendas – ou de uma gestão burocrática do patrimônio familiar.
Mas há ainda outra questão: quando os pais transferem seus anseios não realizados para seus descendentes. Conheço o caso de um empresário bastante rico que transferiu sua vontade de ser piloto de automóveis para o filho. O menino tem talento, é verdade, mas parou de correr, anos atrás, pois não se sentia realizado em participar de corridas.
Essas situações, somadas às que podem ser vistas no seriado, nos mostram um cenário de difícil compreensão. O tempo faz as gerações pensarem de forma diferente, o que traz tensão à convivência entre pais e filhos. Essa dificuldade pode levar aos desentendimentos e a situações de desfecho incontornável, como é possível conferir na produção da ABC levada ao ar pela Amazon.
Neste cenário, vivemos em um mundo no qual os pais aprendem seu ofício na prática e sem nenhum manual eficaz à disposição. Por isso, é praticamente impossível encontrar uma receita perfeita para trazer alguém da infância à idade adulta sem grandes sobressaltos. É possível, no entanto, aprender com os erros alheios e evitar erros clássicos como tentar impor seus valores, frustrações e expectativas em cima de sua prole. Cada um tem seu jeito e suas capacidades: você possui as suas e seus filhos as deles. Por mais que eles carreguem seu DNA, eles não são sua extensão. E têm vontade própria.
Em relação aos filhos, poucas coisas ocorrem como planejamos. O jeito é se adaptar às mudanças e buscar a interação – nunca a imposição. Se insistirmos em impor a nossa vontade, vamos ganhar uma pequena batalha agora e perder a guerra lá na frente.
Para variar, gosto de ilustrar as ideias discutidas aqui com exemplos artísticos. Aqui vai mais um. Trata-se da canção “There For the Grace of God Go I”, da banda Machine. O ritmo dançante, produzido em plena época da disco music, sugere uma letra vibrante e alegre. No entanto, a narrativa é triste, retratando preconceitos raciais e a dificuldade de se criar os filhos.
A música conta a saga de um casal de latinos que mora no Bronx (Carlos e Carmen Vidal), teve um bebê e quer mudar de lá por conta da vizinhança – que não seria ideal para se criar uma criança. Anos depois, com a filha mais velha, acontece o seguinte: “Baby, she turns out to be a natural freak/ Gaining weight and losing sleep/ And when she’s sweet sixteen, she packs her things and leaves/ With a man she met on the street/ Carmen starts to bawl, bangs her head to the wall/ Too much love is worse than none at all (“A criança então se transforma em uma aberração/ Ganhando peso e sem conseguir dormir/ E quando ela faz dezesseis anos, faz as malas e vai embora/ Com um homem que conheceu na rua/ Carmen começa a gritar, bate a cabeça na parede/ Muito amor é muito pior do que nenhum amor”).
Essa música é um alerta constante em minha cabeça: a paternidade é algo que não podemos deixar nunca no automático, acreditando que está tudo bem. Precisamos fazer checagens periódicas e não descuidar nunca das crianças. Pais e mães precisam sempre estar em vigilância contínua – mas não a ponto de sufocar seus filhos com muita atenção. Não se trata de uma tarefa simples, pelo contrário. Mas requer uma concentração constante. Por isso, boa sorte. Todos nós, que temos de educar nossos pequenos, vamos precisar.
A banda Machine, que interpreta a canção “There But For the Grace of God Go I” (há um verso nesta música que, à primeira vista parece ser racista — mas é apenas uma ironia, já que os autores e seus intérpretes são negros e jamais escreveriam uma letra com teor preconceituoso)
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Aluizio Falcão Filho
A minissérie “Little Fires Everywhere”, exibida no Brasil na Amazon Prime, começa com a cena de uma casa pegando fogo. Sua dona, vivida por Reese Witherspoon (foto), está observado as labaredas que consomem sua propriedade com aquela expressão de incredulidade de quem vê seu lar devorado por um incêndio. A narrativa, então, vai retrocedendo em flashbacks de diversas datas passadas e vamos montando em nossa cabeça a explicação para aquela cena inicial.
Trata-se, antes de mais nada, de um enredo que tenta mostrar a maneira pela qual pais tratam e educam seusfilhos. Há todos os tipos de paternidade – desde a mulher branca endinheirada que deseja ter uma família de comercial de margarina até a imigrante chinesa ilegal que abandona seu bebê para que a menina seja adotada (e se arrepende). O elenco, repetindo uma fórmula atual, parece ter sido minuciosamente escolhido para representar uma diversidade racial longe da realidade, mas que parece ser hoje obrigatória nas produções de Hollywood ou de streaming – um tema talvez para discussão futura.
Este seriado, apesar de ambientado nos anos 1980 e 1990, reflete bastante o dilema enfrentado por pais e mães nos dias de hoje: até quando as famílias devem proporcionar conforto aos jovens, facilitando a solução de seus problemas? Ou seria melhor tornar suas vidas mais difíceis e treiná-los para dias mais duros? Outro problema: até quando podemos pressionar nossos filhos em busca de uma suposta perfeição? Mais que isso: temos o direito de tentar moldar os rebentos à nossa vontade e obrigá-los a seguir os nossos valores?
Estas dúvidas assolam praticamente todos as famílias de classe média e classe alta pelo planeta. Cada residência enfrenta um tipo de desafio, como se vê nos diversos núcleos da minissérie.
O conforto que as classes mais abastadas podem proporcionar aos seus jovens, por exemplo, foi algo que fez um amigo, dono de um grupo que fatura mais de R$ 4 bilhões, conversar comigo sobre o tema. Ele veio de uma família pobre e, desde cedo, ajudou o pai a cuidar de seu pequeno negócio. Sob sua batuta, aquele empreendimento cresceu e hoje atua em comércio e indústria.
A preocupação dele é encontrar o equilíbrio entre estimular a capacidade de seus filhos de crescer na vida e, ao mesmo tempo, proporcionar um certo conforto. A maioria dos pais quer suavizar o caminho que suas crianças terão de percorrer na vida. Mas isso está certo? Ao tornar tudo mais fácil para eles, não criaremos molengas que não saberão como lutar no futuro? Não necessariamente. No caso deste amigo, o filho mais velho, após arrumar um emprego, resolveu sair de casa, rachando um apartamento pequeno com um amigo, vivenciando uma queda expressiva em seu padrão de vida.
Mas há casos em que o conforto exagerado pode diminuir a garra de um filho rico. Há vários herdeiros por aí que perderam, aos poucos, a resiliência necessária para obter sucesso próprio e hoje vivem apenas de rendas – ou de uma gestão burocrática do patrimônio familiar.
Mas há ainda outra questão: quando os pais transferem seus anseios não realizados para seus descendentes. Conheço o caso de um empresário bastante rico que transferiu sua vontade de ser piloto de automóveis para o filho. O menino tem talento, é verdade, mas parou de correr, anos atrás, pois não se sentia realizado em participar de corridas.
Essas situações, somadas às que podem ser vistas no seriado, nos mostram um cenário de difícil compreensão. O tempo faz as gerações pensarem de forma diferente, o que traz tensão à convivência entre pais e filhos. Essa dificuldade pode levar aos desentendimentos e a situações de desfecho incontornável, como é possível conferir na produção da ABC levada ao ar pela Amazon.
Neste cenário, vivemos em um mundo no qual os pais aprendem seu ofício na prática e sem nenhum manual eficaz à disposição. Por isso, é praticamente impossível encontrar uma receita perfeita para trazer alguém da infância à idade adulta sem grandes sobressaltos. É possível, no entanto, aprender com os erros alheios e evitar erros clássicos como tentar impor seus valores, frustrações e expectativas em cima de sua prole. Cada um tem seu jeito e suas capacidades: você possui as suas e seus filhos as deles. Por mais que eles carreguem seu DNA, eles não são sua extensão. E têm vontade própria.
Em relação aos filhos, poucas coisas ocorrem como planejamos. O jeito é se adaptar às mudanças e buscar a interação – nunca a imposição. Se insistirmos em impor a nossa vontade, vamos ganhar uma pequena batalha agora e perder a guerra lá na frente.
Para variar, gosto de ilustrar as ideias discutidas aqui com exemplos artísticos. Aqui vai mais um. Trata-se da canção “There For the Grace of God Go I”, da banda Machine. O ritmo dançante, produzido em plena época da disco music, sugere uma letra vibrante e alegre. No entanto, a narrativa é triste, retratando preconceitos raciais e a dificuldade de se criar os filhos.
A música conta a saga de um casal de latinos que mora no Bronx (Carlos e Carmen Vidal), teve um bebê e quer mudar de lá por conta da vizinhança – que não seria ideal para se criar uma criança. Anos depois, com a filha mais velha, acontece o seguinte: “Baby, she turns out to be a natural freak/ Gaining weight and losing sleep/ And when she’s sweet sixteen, she packs her things and leaves/ With a man she met on the street/ Carmen starts to bawl, bangs her head to the wall/ Too much love is worse than none at all (“A criança então se transforma em uma aberração/ Ganhando peso e sem conseguir dormir/ E quando ela faz dezesseis anos, faz as malas e vai embora/ Com um homem que conheceu na rua/ Carmen começa a gritar, bate a cabeça na parede/ Muito amor é muito pior do que nenhum amor”).
Essa música é um alerta constante em minha cabeça: a paternidade é algo que não podemos deixar nunca no automático, acreditando que está tudo bem. Precisamos fazer checagens periódicas e não descuidar nunca das crianças. Pais e mães precisam sempre estar em vigilância contínua – mas não a ponto de sufocar seus filhos com muita atenção. Não se trata de uma tarefa simples, pelo contrário. Mas requer uma concentração constante. Por isso, boa sorte. Todos nós, que temos de educar nossos pequenos, vamos precisar.
A banda Machine, que interpreta a canção “There But For the Grace of God Go I” (há um verso nesta música que, à primeira vista parece ser racista — mas é apenas uma ironia, já que os autores e seus intérpretes são negros e jamais escreveriam uma letra com teor preconceituoso)
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