Exame.com
Continua após a publicidade

Bolsonaro não surpreendeu na ONU

Em seu discurso na Assembleia Geral na terça-feira 24, o presidente confirmou que o único Bolsonaro que existe é o da campanha eleitoral

BOLSONARO: durante sua fala, o presidente deu voz a teorias da conspiração, fez referências gratuitas a Deus e mostrou muita agressividade contra seus inimigos: a esquerda, os índios e a preservação do meio ambiente / REUTERS/Lucas Jackson
BOLSONARO: durante sua fala, o presidente deu voz a teorias da conspiração, fez referências gratuitas a Deus e mostrou muita agressividade contra seus inimigos: a esquerda, os índios e a preservação do meio ambiente / REUTERS/Lucas Jackson
J
Joel Pinheiro da Fonseca

Publicado em 27 de setembro de 2019 às, 14h11.

Última atualização em 27 de setembro de 2019 às, 16h43.

Não havia nada na fala de Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU que já não estivesse contratado, precificado. Nada ali surpreendeu; exceto, talvez, o fato de ser mais uma refutação da esperança que alguns insistem em nutrir: de que, em algum momento, o presidente irá deixar a retórica das redes sociais de lado (com suas doses generosas de teorias da conspiração, picuinhas pessoais e fake news) e passar a portar-se segundo o padrão antigo do que significava ser o presidente da República. Bolsonaro deu mais uma confirmação de que sim, o Bolsonaro da campanha eleitoral é o único que existe; nenhuma transformação está a caminho.

Feita essa qualificação, volto ao ponto: não há nada de novo no discurso do presidente da ONU. Foi o que esperávamos: horrível. Bolsonaro deu voz a teorias da conspiração (Foro de São Paulo comanda um esquema de tornar o continente socialista, Cuba patrocinou um golpe comunista no Brasil que só foi impedido graças ao golpe militar), fez referências gratuitas a Deus e mostrou muita agressividade contra seus inimigos de sempre: a esquerda, os índios, a preservação do meio ambiente, os gays, as ONGs, a ordem global.

Se teve um tema que colocou o Brasil no centro das atenções globais recentemente foi o meio ambiente e a devastação da floresta amazônica em decorrência da política de desmonte deliberado da estrutura de preservação ambiental. Em reação um tanto oportunista, a França se lançou numa campanha midiática que incluiu até chamar a Amazônia brasileira como “patrimônio mundial”. O Brasil, com razão, tem que afirmar sua soberania.

O discurso da ONU era um bom momento para o presidente se colocar de uma maneira nova sobre a questão: mostrar que soberania e proteção ambiental caminham juntas. Apenas o Brasil pode cuidar de sua floresta, e isso é o que já estamos fazendo e queremos fazer mais, inclusive com a ajuda de outros países se possível.

Ao contrário disso, ele manteve a dicotomia: nós queremos a soberania, portanto rejeitamos as demandas de preservação. Negar a piora nos números, questionar os institutos de medem a devastação, atribuir tudo a causas naturais e cíclicas, citar números irrelevantes (como a parcela de floresta ainda não desmatada, como se isso fosse um argumento que contrariasse a piora atual); tudo isso equivale a dizer, em alto e bom som, que a política do Estado brasileiro com relação à Amazônia seguirá sendo a de promover sua predação irrestrita.

Enquanto isso, Eduardo Bolsonaro, possível embaixador em Washington e príncipe real, fez post para ridicularizar Greta Thunberg, ativista de 16 anos, espalhando foto falsa e informação mentirosa (a de que ela seria financiada por George Soros). Além disso, tirou foto na frente da famosa escultura Não-Violência, um pedido de paz feito em homenagem a John Lennon – morto em Nova York –, fazendo o símbolo da arminha com a mão.

O Brasil caminha rapidamente para destruir toda a possível boa vontade das demais nações. Ao mesmo tempo, nossas grandes apostas na hora de se aliar a governantes de outros países têm dado errado: Netanyahu perdeu as eleições em Israel, Macri provavelmente perderá na Argentina. Se Trump – a quem Bolsonaro declarou agora “I love you” – perder em 2020, seremos párias completos. O acordo com a UE segue sendo a grande vitória diplomática do governo até agora, mas ele ainda precisa ser ratificado em cada país, e esses showzinhos do presidente e de seus filhinhos não ajudam em nada.

A última linha de defesa dos apoiadores do governo é dizer que nossas relações estão melhores do que na era PT, quando nos aliamos com o bolivarianismo latino-americano e até mesmo, em certo momento, com o Irã. Sim, é um alívio não ter mais essa política externa. Só que não é preciso escolher entre as duas. Um Brasil altivo, aliado do mundo democrático e capitalista, sem teorias da conspiração, sem bravatas auto-sabotadoras e sem fake news é perfeitamente possível. Basta escolher não tratar nossa política externa como a continuação da militância de redes sociais. Para este governo, é pedir demais.