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Um conto de terror

A Reforma Tributária tramitando no Senado vem escancarar o que aprendemos desde muito cedo: aqui, a regra geral aplica-se apenas aos heróis

A Reforma Tributária tramitando no Senado vem escancarar o que aprendemos desde muito cedo: aqui, a regra geral aplica-se apenas aos heróis (Sergio Lima/Getty Images)
A Reforma Tributária tramitando no Senado vem escancarar o que aprendemos desde muito cedo: aqui, a regra geral aplica-se apenas aos heróis (Sergio Lima/Getty Images)

Agora que estamos nos aproximando do fim do mês de outubro, permitam-me um pequeno conto de terror. Então comecemos pelo “Era uma vez...”.

Era uma vez um reino tão, tão distante, mas tão distante, que chegava a ser distante até da própria realidade. Neste reino, alguns grupos de moradores se achavam especiais por algum motivo. Merecedores de um tratamento diferenciado. Mas em que eles contribuíam para o crescimento do reino para se sentirem tão especiais? Bom. Alguns produziam flores. Outros, vinhos e espumantes. Tinham também aqueles que cuidavam de estradas, aqueles que carimbavam papéis, aqueles que faziam pilhas e aqueles que embelezavam os cabelos dos indivíduos. Lembrei o nome do reino: era o Reino das Exceções.

No Brasil, conhecido por ser o Reino das Exceções em tantos outros aspectos, a Reforma Tributária tramitando no Senado vem escancarar o que aprendemos desde muito cedo em terras tropicais: aqui, a regra geral aplica-se apenas aos heróis. E se vocês não estão familiarizados ainda com o conceito, lembrem-se que heróis são aqueles que não tiveram “tempo de correr”.

A aguardada mudança na tributação sobre o consumo, que reduziria sobremaneira a regressividade do nosso sistema de hoje, que impõe aos mais pobres uma alíquota proporcionalmente mais alta, foi bombardeada com mais de 400 emendas propostas pelos Senadores. A grande maioria delas, com a temática de um conto de terror: inserir mais exceções e mais benefícios, afinal, são muitos setores especiais. Flores. Tratamentos estéticos. Formaturas e casamentos milionários, sim, por que não? Centenas de propostas de tratamentos diferenciados às custas de uma alíquota geral mais alta para aqueles que “não tiveram tempo de correr”.

Não há milagre, não há magia. Sim, parece uma história de terror. Fato é que cada exceção que for acrescentada será paga por todos nós em uma alíquota geral mais alta. Não há como fingir que dá para escapar disso. A matemática é implacável.

Longe de mim querer estabelecer aqui qualquer raciocínio preconceituoso, mas qual a fundamentação para tantos setores se sentirem tão especiais? Será que é porque, por diversas razões, estes mesmos setores sempre tenham sido tratados de maneira mais benéfica (quando comparados aos outros) ao longo dos anos? Talvez. Ser especial já é difícil no Brasil. Imagina ser comum.

Moramos no país em que todos querem seu pedacinho de exceção, sua carteirinha de meia entrada, seu acesso à sala VIP, mas disso já sabíamos. O que precisa ficar claro é que nosso famoso manicômio tributário foi construído às custas de cada um destes tijolinhos: exceções, regimes favorecidos e alíquotas diferenciadas. A cada tratamento diferenciado em nosso sistema tributário, uma nova ala se abria. E é exatamente isso que não queremos na reforma tributária.

Sabemos que o grande desafio desta reforma é construir um sistema justo para as próximas décadas, equilibrando compromissos que não podem ser ignorados. Há que se encontrar uma saída para a Zona Franca de Manaus, prevista constitucionalmente. Há que se aguardar o fim de inúmeros benefícios fiscais, conforme previsto em lei complementar. Há que se combater fake news que (propositalmente) confundem assuntos e conceitos para distorcer a opinião pública. Discutir a reforma tributária no Brasil é pensar no futuro, ao mesmo tempo em que somos constantemente lembrados dos motivos que nos trouxeram até aqui: as inúmeras confusões e “soluções mágicas” do passado.

Engana-se quem pensa que nossa complexidade tributária está apenas no número de tributos, e talvez seja por isso que o argumento da simplificação não seja tão tocante à sociedade. Nossa complexidade nasceu principalmente às expensas de cada regime especial, de cada exceção implementada, e eu não duvido que, algumas delas, talvez tenha sido com a melhor das intenções. Fato é que não podemos cometer os mesmos erros.

Era uma vez um reino tão tão distante da realidade, que, de repente, ideias assombrosas, ditas de forma tão natural, já não assombravam ninguém.

Pois (por mais incrível que pareça) dessa vez temos a opção de escolher outro final para este conto de terror tributário. Afinal, se convivemos com um sistema que cobra dos mais pobres para que aqueles especiais possam ter seus regimes privilegiados, algo de errado fizemos para isso. E agora temos que corrigir a rota.

Ideias assombradas, nessa época do ano, costumam ser relativamente comuns. O que não podemos é aceitá-las. De novo.