Sísifo era brasileiro
Um dia após o outro, o Brasil desfaz o resultado de esforços de anos para recomeçar do zero
Da Redação
Publicado em 5 de julho de 2022 às 15h01.
Por André Bolini
Acho que fui amaldiçoado. Não importa para onde olhe, estou condenado a ver sádicas analogias com o Brasil. A mitologia grega, por exemplo, é terra fértil para o exercício de minha sina. E minha vítima da vez é Sísifo. Para quem não o conhece, apresento-o: filho do Rei da Tessália, o rapaz consagrou-se na História como fundador da cidade de Corinto. Audacioso e muito sagaz, não perdeu sequer uma de suas várias oportunidades em ludibriar os Deuses e enganar a todos - inclusive a Zeus. Enganou até mesmo a morte - e mais de uma vez. Mas, quando, enfim, após longa vida, vislumbrava o descanso final de sua alma, Zeus o condenou por toda a eternidade: Sísifo foi castigado a rolar uma gigante pedra de mármore montanha a cima até que, já perto do cume, escorregavam-lhe as mãos e a pedra rolava montanha abaixo - voltando a seu ponto inicial de partida. Repetitivo e colossal esforço que, invariavelmente, mostrava-se inútil pelo resultado. Será que apenas eu vejo uma excelente síntese de nosso País nessa história?
A produtividade brasileira está estagnada há 40 anos em comparação com os outros países do mundo. Crescemos? Sim, claro! Mas os outros cresceram bem mais. No comparativo, não saímos do lugar. E, obviamente, não faltam fatores para explicar essa lambança: o sistema tributário é uma bagunça; a nossa estrutura educacional é inábil; as nossas legislações para regular a atividade econômica são burocráticas, confusas e custosas; o nosso Judiciário é inseguro e imprevisível quando do cumprimento de contratos; enfim. Resumidamente, as instituições brasileiras falharam. E, hoje, quero especificamente tratar de nossas instituições fiscais. Sobre elas, tenho muito a lamentar: parece que a cada passo dado à frente, insistimos em dar outro para trás. Sísifo ficaria orgulhoso.
Nas décadas de 1970, 80 e 90, a baderna fiscal era tamanha que resultou na sinistra hiperinflação que vivemos. Chegamos a registrar aumento de 5.265% no IPCA acumulado de um ano. Quando, enfim, veio o Plano Real, além da troca de moeda com indexação pela famosa URV, nascia também o principal meio de defesa contra a sanha inflacionária do Estado brasileiro: a Lei de Responsabilidade Fiscal. Vitória! Avançamos 10 passos à frente naquele momento! Mas, claro, Sísifo é boa metáfora para o Brasil por um motivo. Na década seguinte, a gestão econômica do Partido dos Trabalhadores conseguiu colocar a LRF sob ameaça: o aumento de gastos foi descomunal - e sem qualquer equilíbrio orçamentário sustentável. Estados e municípios contratando despesas que seriam cristalizadas em orçamento com base em receita extraordinária; subsídios para lá e para cá sem constarem em lei orçamentária; a TJLP no BNDES para distribuir dinheiro aos “campeões nacionais”; déficits recorrentes com a senhora Dilma Rousseff; dentre tantas outras irresponsabilidades. Regredimos 9 passos para trás. Na ameaça do derradeiro passo, veio o impeachment e voltamos a avançar com a PEC do Teto de Gastos. Se FHC está para o Plano Real, Michel Temer está para o Teto de Gastos. Mas lembremo-nos, caro amigo leitor, de nossa danação aos moldes de nosso colega grego.
Às vésperas da eleição, eis que o governo decidiu rasgar o Teto de Gastos. O pacote de “bondades” que vem por aí (ao meu ver, melhor apelidado de “PEC Kamikaze”) inclui aumentar o benefício do Auxílio Brasil e zerar sua fila de espera; aumentar o Auxílio Gás; criar um auxílio de R$1.000 para caminhoneiros; bancar a gratuidade para idosos no transporte público; bancar subsídios em etanol; criar um auxílio para taxistas; e aumentar o repasse para programas da agricultura familiar. O impacto previsto é da ordem de R$40 bilhões. Mas é neste pequeno detalhe em que mora o diabo: todo esse gasto virá furando as restrições do teto. No dia seguinte à aprovação do Senado, a alta do dólar e queda da bolsa deixaram clara a percepção no aumento do risco-país. A principal fonte de certeza de nossa estrutura fiscal torna-se cada vez mais incerta. Já foram, afinal, ao menos cinco emendas constitucionais aprovadas para alterar as regras fiscais desde 2019.
Não há como negar que passamos por tempos difíceis. Dois anos de pandemia com uma guerra assolando o preço do petróleo estão fazendo o mundo todo pagar alto preço. E, por mais desejável que seja ampliar todo tipo de benefício à população mais pobre, é bom lembrar que não temos potência fiscal como outros países. Nossa situação é trágica: as despesas obrigatórias já superam a receita líquida. Os dispêndios com previdência ocupam 60% do orçamento da União, ainda que sejamos um país jovem (note: gastamos, em relação proporcional ao PIB, a mesma coisa que o Japão gasta em matéria de previdência, mas com uma pequena diferença: a população idosa japonesa é 3 vezes maior que a brasileira). Absolutamente insustentável. Direitos adquiridos generalizados também contribuem para essa insustentabilidade - assim como o crescimento automático de despesas com folha de pagamentos, educação e saúde - sem que se avalie o motivo para incremento do gasto e seu respectivo impacto. Fragilidade das contas públicas é eufemismo para nos descrever. Assim, pergunto: será que é neste cenário que deveríamos anular a mais importante âncora fiscal do Brasil atual?
Lembre-se sempre, amigo leitor, que nosso País não é pobre por ordem do acaso: são anos e anos com exímia dedicação para não sairmos do lugar. Já acertamos no diagnóstico e no tratamento de nossas comorbidades no passado - com soluções elegantes e engenhosas, diga-se de passagem. Mas, ah!, como são grandes as tentações eleitorais, corporativistas e patrimonialistas no meio do caminho. Eis que a cada passo à frente, acompanha outro para trás. O esforço de décadas para a criação de consensos e consolidação institucional se esvai tão logo se aproximam as eleições. Se me permite a observação, constato: trabalho leve e fácil este o teu, Sísifo. Há pedras tão mais pesadas que a tua! Tente ser responsável fiscalmente no Brasil por um dia sequer para variar.
* André Bolini é formado em Administração de Empresas pela FGV, é analista de crédito no mercado financeiro e empreendedor.
Por André Bolini
Acho que fui amaldiçoado. Não importa para onde olhe, estou condenado a ver sádicas analogias com o Brasil. A mitologia grega, por exemplo, é terra fértil para o exercício de minha sina. E minha vítima da vez é Sísifo. Para quem não o conhece, apresento-o: filho do Rei da Tessália, o rapaz consagrou-se na História como fundador da cidade de Corinto. Audacioso e muito sagaz, não perdeu sequer uma de suas várias oportunidades em ludibriar os Deuses e enganar a todos - inclusive a Zeus. Enganou até mesmo a morte - e mais de uma vez. Mas, quando, enfim, após longa vida, vislumbrava o descanso final de sua alma, Zeus o condenou por toda a eternidade: Sísifo foi castigado a rolar uma gigante pedra de mármore montanha a cima até que, já perto do cume, escorregavam-lhe as mãos e a pedra rolava montanha abaixo - voltando a seu ponto inicial de partida. Repetitivo e colossal esforço que, invariavelmente, mostrava-se inútil pelo resultado. Será que apenas eu vejo uma excelente síntese de nosso País nessa história?
A produtividade brasileira está estagnada há 40 anos em comparação com os outros países do mundo. Crescemos? Sim, claro! Mas os outros cresceram bem mais. No comparativo, não saímos do lugar. E, obviamente, não faltam fatores para explicar essa lambança: o sistema tributário é uma bagunça; a nossa estrutura educacional é inábil; as nossas legislações para regular a atividade econômica são burocráticas, confusas e custosas; o nosso Judiciário é inseguro e imprevisível quando do cumprimento de contratos; enfim. Resumidamente, as instituições brasileiras falharam. E, hoje, quero especificamente tratar de nossas instituições fiscais. Sobre elas, tenho muito a lamentar: parece que a cada passo dado à frente, insistimos em dar outro para trás. Sísifo ficaria orgulhoso.
Nas décadas de 1970, 80 e 90, a baderna fiscal era tamanha que resultou na sinistra hiperinflação que vivemos. Chegamos a registrar aumento de 5.265% no IPCA acumulado de um ano. Quando, enfim, veio o Plano Real, além da troca de moeda com indexação pela famosa URV, nascia também o principal meio de defesa contra a sanha inflacionária do Estado brasileiro: a Lei de Responsabilidade Fiscal. Vitória! Avançamos 10 passos à frente naquele momento! Mas, claro, Sísifo é boa metáfora para o Brasil por um motivo. Na década seguinte, a gestão econômica do Partido dos Trabalhadores conseguiu colocar a LRF sob ameaça: o aumento de gastos foi descomunal - e sem qualquer equilíbrio orçamentário sustentável. Estados e municípios contratando despesas que seriam cristalizadas em orçamento com base em receita extraordinária; subsídios para lá e para cá sem constarem em lei orçamentária; a TJLP no BNDES para distribuir dinheiro aos “campeões nacionais”; déficits recorrentes com a senhora Dilma Rousseff; dentre tantas outras irresponsabilidades. Regredimos 9 passos para trás. Na ameaça do derradeiro passo, veio o impeachment e voltamos a avançar com a PEC do Teto de Gastos. Se FHC está para o Plano Real, Michel Temer está para o Teto de Gastos. Mas lembremo-nos, caro amigo leitor, de nossa danação aos moldes de nosso colega grego.
Às vésperas da eleição, eis que o governo decidiu rasgar o Teto de Gastos. O pacote de “bondades” que vem por aí (ao meu ver, melhor apelidado de “PEC Kamikaze”) inclui aumentar o benefício do Auxílio Brasil e zerar sua fila de espera; aumentar o Auxílio Gás; criar um auxílio de R$1.000 para caminhoneiros; bancar a gratuidade para idosos no transporte público; bancar subsídios em etanol; criar um auxílio para taxistas; e aumentar o repasse para programas da agricultura familiar. O impacto previsto é da ordem de R$40 bilhões. Mas é neste pequeno detalhe em que mora o diabo: todo esse gasto virá furando as restrições do teto. No dia seguinte à aprovação do Senado, a alta do dólar e queda da bolsa deixaram clara a percepção no aumento do risco-país. A principal fonte de certeza de nossa estrutura fiscal torna-se cada vez mais incerta. Já foram, afinal, ao menos cinco emendas constitucionais aprovadas para alterar as regras fiscais desde 2019.
Não há como negar que passamos por tempos difíceis. Dois anos de pandemia com uma guerra assolando o preço do petróleo estão fazendo o mundo todo pagar alto preço. E, por mais desejável que seja ampliar todo tipo de benefício à população mais pobre, é bom lembrar que não temos potência fiscal como outros países. Nossa situação é trágica: as despesas obrigatórias já superam a receita líquida. Os dispêndios com previdência ocupam 60% do orçamento da União, ainda que sejamos um país jovem (note: gastamos, em relação proporcional ao PIB, a mesma coisa que o Japão gasta em matéria de previdência, mas com uma pequena diferença: a população idosa japonesa é 3 vezes maior que a brasileira). Absolutamente insustentável. Direitos adquiridos generalizados também contribuem para essa insustentabilidade - assim como o crescimento automático de despesas com folha de pagamentos, educação e saúde - sem que se avalie o motivo para incremento do gasto e seu respectivo impacto. Fragilidade das contas públicas é eufemismo para nos descrever. Assim, pergunto: será que é neste cenário que deveríamos anular a mais importante âncora fiscal do Brasil atual?
Lembre-se sempre, amigo leitor, que nosso País não é pobre por ordem do acaso: são anos e anos com exímia dedicação para não sairmos do lugar. Já acertamos no diagnóstico e no tratamento de nossas comorbidades no passado - com soluções elegantes e engenhosas, diga-se de passagem. Mas, ah!, como são grandes as tentações eleitorais, corporativistas e patrimonialistas no meio do caminho. Eis que a cada passo à frente, acompanha outro para trás. O esforço de décadas para a criação de consensos e consolidação institucional se esvai tão logo se aproximam as eleições. Se me permite a observação, constato: trabalho leve e fácil este o teu, Sísifo. Há pedras tão mais pesadas que a tua! Tente ser responsável fiscalmente no Brasil por um dia sequer para variar.
* André Bolini é formado em Administração de Empresas pela FGV, é analista de crédito no mercado financeiro e empreendedor.