Que Juízes Queremos? Reflexões sobre o Exame Nacional da Magistratura
Recém-empossado presidente do STF e do CNJ, Luís Roberto Barroso anunciou recentemente a criação do Exame Nacional da Magistratura
Publicado em 24 de outubro de 2023 às, 13h11.
Recentemente, o ministro Luís Roberto Barroso, recém-empossado presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), anunciou a criação do Exame Nacional da Magistratura. O exame foi descrito como um processo de certificação obrigatório e prévio aos diferentes concursos públicos da magistratura em todo o país. Seria, a princípio, um mecanismo unificador para a pré-seleção de juízes. Os concursos públicos seguirão sendo organizados de maneira autônoma pelos diferentes tribunais de justiça.
À primeira vista, a iniciativa parece ser um passo na direção de otimizar os processos seletivos, atuando como um filtro que economiza recursos e agiliza os concursos subsequentes, tendo como base um grupo mais enxuto de candidatos já pré-selecionados. Conforme discuti em uma coluna anteriormente publicada neste espaço, essa parece ser uma abordagem acertada, equilibrando eficiência com precisão, e centralização com descentralização. No entanto, é imperativo indagar sobre os fundamentos da proposta defendida por Barroso. A proposta foi aventada sem estar embasada em um diálogo prévio ou em um estudo público robusto. Contudo, como ainda não foi formalmente introduzida, este é justamente o momento para colaborar com seu refinamento. A maneira como selecionamos nossos juízes tem consequências profundas para a dinâmica de nossa democracia, razão pela qual deveria ser tratada com maior cautela.
Dada a crescente ampliação dos poderes e atribuições do poder Judiciário, é cada vez mais estratégico determinar quem são nossos juízes. As informações disponíveis sugerem que o lançamento do Exame seria acompanhado de esforços para aumentar a diversidade étnico-racial na magistratura, como, por exemplo, a criação de bolsas de estudo para a preparação de candidatos pretos e pardos. Enquanto o movimento em prol da equidade racial é elogiável, é essencial considerar que a pauta de diversidade no judiciário (e, de forma mais ampla, no serviço público) deve ir muito além das discussões sobre raça. Ela deve, sobretudo, ser fundamentada na busca por diversidade cognitiva, promovendo mecanismos que garantam o recrutamento de juízes com diversas experiências profissionais e de vida, além de um repertório diverso de habilidades e atitudes.
No Brasil, muitos juízes ingressam na magistratura ainda jovens, e muitos permanecem nela por toda a sua vida profissional. Isso limita a diversidade de experiências que poderiam enriquecer suas atuações. Por exemplo, um juiz com experiência anterior na iniciativa privada, em organizações da sociedade civil, órgãos públicos ou instituições multilaterais teria uma visão mais matizada das questões que julga. Imagine quão enriquecedor seria se um juiz, antes de assumir seu cargo, tivesse trabalhado diretamente com políticas públicas? Esse conhecimento prático poderia levar a decisões mais acertadas sobre complexas questões de alocação de recursos públicos.
Nos últimos anos, o Brasil fortaleceu um sistema meritocrático de acesso ao serviço público através de concursos objetivos e impessoais. Esse é um avanço significativo que merece reconhecimento. No entanto, se os concursos nos possibilitaram progredir na direção de um recrutamento profissional, ainda enfrentamos o desafio de conciliar meritocracia com outros valores fundamentais na gestão pública. A crescente ênfase na diversidade tem questionado noções tradicionais de mérito. No entanto, é fundamental também considerar outros aspectos como motivação, vocação, neutralidade política e, especialmente, a adequação entre as competências dos candidatos e as demandas de habilidades do serviço público. Isso é relevante tanto para o poder executivo quanto para o judiciário. Como o Exame Nacional da Magistratura pode nos ajudar nesse sentido, com base nas informações atuais, permanece incerto.
Olhando além de nossas fronteiras, a experiência internacional oferece múltiplas perspectivas que podem enriquecer esse debate. Mecanismos holísticos de avaliação de candidatos existem e são adotados para o recrutamento de juízes em democracias avançadas que poderíamos utilizar de referência.
Na Holanda, a seleção de juízes envolve a aplicação de testes de inteligência que avaliam aspectos como o pensamento abstrato, analogias verbais e competência linguística com elevado poder preditivo. Competências comunicativas, sociais e profissionais também são avaliadas em entrevistas, mas o instrumento mais valioso é um assessment de um dia, que avalia uma gama ampla de habilidades e competências mediante aplicação de uma variedade de instrumentos avaliativos, como atividades em grupo e simulações. Também são realizados testes para identificar aspectos problemáticos da personalidade de um candidato, como vícios ou transtornos psiquiátricos. Testes de integridade também são adotados, não mediante entrevistas (que poderiam gerar respostas socialmente aceitáveis), mas por meio de simulações baseadas em dilemas morais.
Consideremos, por exemplo, a Noruega e a Dinamarca, onde o poder judiciário inclui os chamados "Dommerfullmektig". Nestes países nórdicos, jovens advogados são recrutados para atuar temporariamente como magistrados sob a supervisão de juízes mais experientes. Esta é uma abordagem inovadora que visa atrair novos talentos com diferentes competências ao judiciário, ao mesmo tempo que oferece a esses profissionais uma experiência prática, permitindo-lhes avaliar se desejam seguir na carreira de juiz.
A França, em contraste, tem uma abordagem diversificada para o recrutamento judiciário. Existem múltiplas vias de acesso à magistratura, com diversos tipos de concursos públicos que se adequam a variados perfis de candidatos, desde recém-graduados a profissionais experientes na iniciativa privada e servidores públicos de outras carreiras. Adicionalmente ao concurso público, o sistema francês também oferece entradas laterais de ingresso à magistratura. Um exemplo é o "détachement judiciaire", que possibilita a cedência de funcionários públicos e docentes universitários ao judiciário por um período fixo não renovável de 5 anos. Esse mecanismo possibilita que profissionais de diversas áreas contribuam com sua expertise, enriquecendo a tomada de decisão nos tribunais.
Outra abordagem seria adotar mecanismos de "secondment" para juízes, isto é, a cessão temporária destes profissionais a outras organizações, no Brasil ou no exterior, a fim de adquirirem novos conhecimentos e perspectivas. Imagine juízes atuando temporariamente em judiciários de países com abordagens jurídicas inovadoras e, posteriormente, retornando para implementar inovações no Brasil. Dada a crescente influência de algoritmos e IA na tomada de decisões humanas, haveria grande valor em estabelecer programas de "secondment" de juízes em startups, grandes empresas tech, think tanks e outras instituições focadas no desenvolvimento de tecnologias de ponta.
Uma abordagem alternativa pode ser empregada, valorizando o treinamento contínuo dos juízes que já estão em exercício por meio da integração de novos colaboradores. O CNJ poderia instituir um Fellowship de Transformação Judiciária, trazendo para os tribunais tecnólogos e designers de serviços com o objetivo de aprimorar a administração judicial, a transparência e o acesso à justiça. Seria uma estratégia para inserir profissionais em fases avançadas de suas carreiras em "missões temporárias" dentro do judiciário. Tal iniciativa poderia potencializar a qualidade da justiça no Brasil. Há evidências de que a profissionalização do serviço público é um processo que influencia positivamente: ao incorporar novos talentos ao judiciário, promovemos a capacitação e o aprimoramento dos profissionais já estabelecidos no sistema.
Ao analisar as práticas de recrutamento judicial ao redor do mundo, percebe-se a importância de diversificar as abordagens. Instituições robustas são forjadas a partir de uma gama de experiências e perspectivas. A diversidade de experiências e visões, afinal, é um ativo inestimável para qualquer instituição. Sejam métodos temporários, como o Dommerfullmektig, ou sistemas mais convencionais que incorporam flexibilidade, a exemplo da França, diversificar as abordagens de recrutamento não é apenas desejável — é essencial.
A seleção criteriosa de magistrados é fundamental para a integridade da justiça. A proposta do Ministro Barroso, na presidência do STF e CNJ, introduz novas perspectivas. Contudo, enquanto o Exame Nacional da Magistratura é uma inovação bem-vinda, ele deve ser entendido como um complemento, e não a única opção, no debate sobre o aperfeiçoamento da magistratura brasileira. Há outras sugestões, igualmente valiosas, que merecem consideração em um diálogo aberto sobre o perfil ideal de juízes para o Brasil do futuro. Só através de uma análise aprofundada e participativa conseguiremos construir um judiciário que seja, além de justo, plural, dinâmico e inovador.