Propriedade Intelectual e individual em biotecnologia (e saúde pública)
Há 10 anos, a Suprema Corte americana relembrou ao mundo que "leis da natureza, fenômenos naturais e ideias não são patenteáveis"
Publicado em 1 de dezembro de 2023 às, 13h28.
Há 10 anos, a Suprema Corte americana relembrou ao mundo que "leis da natureza, fenômenos naturais e ideias não são patenteáveis". Nas patentes da empresa Myriad decorrentes do sequenciamento e de muitas mutações dos genes BRCA1 e BRCA2 (causadores de mais de 10% dos cânceres de mama e ovário), não havia uma técnica específica. Era, no fundo, uma descrição da natureza, uma descoberta, resultado de muito investimento público e privado em décadas de pesquisas realizadas por centenas de mãos. Se, por um lado, os cientistas da Myriad contribuíram com o conhecimento científico, por outro lado, a sua política agressiva (que as patentes lhes davam pleno direito) dificultou futuros avanços no conhecimento da genética e causou prejuízos na atenção pública.
A existência de patentes ou propriedades intelectuais como um todo é algo que se justifica, sem dúvida alguma. O lucro secundário às inovações é um estímulo inerente aos avanços científicos. Entretanto, naquele 13 de junho de 2023, ficou determinado que a descrição de uma sequência de DNA, mesmo que clonado e "resumido" na forma da sequência codificante que se traduz em proteína (cDNA), não é inovação, mas apenas uma descoberta. Recentemente, a empresa concordou com a decisão e reconheceu os inúmeros avanços em genética e medicina de precisão que a queda de algumas de suas patentes trouxe.
De outro lado do espectro, não tentando se apossar de uma sequência genética natural que é "gratuita para todos os homens e reservada exclusivamente a ninguém", segundo o juiz Clarence Thomas, mas invadindo a propriedade individual, diversos ataques hackers já conseguiram estabelecer a identidade de milhões de indivíduos em estudos científicos e bancos de dados genéticos. A ideia subjacente a esses furtos de informações genéticas individuais é vender essas sagradas, preciosas e também valiosas informações. O motivo é muito simples, embora extremamente antiético e criminoso.
Quão lucrativo pode ser para uma seguradora de saúde, por exemplo, conhecer os indivíduos com chance de 80 ou 90% de ter câncer ao longo da vida? Sim, essa é a probabilidade associada a determinadas variantes patogênicas (mutações deletérias) em genes de alta predisposição ao câncer. Mas não apenas isso, ao ter acesso ao DNA de uma pessoa, é possível não apenas inferir probabilidade de dezenas de doenças, mas obter informações sobre a sua ascendência. A falta de escrúpulos vai ainda mais além. No mês passado, a empresa 23andMe, que faz genotipagem (avaliação de polimorfismos e variantes), foi invadida por hackers que roubaram informações, incluindo a identidade e a ascendência familiar que essas informações revelam. Nesse caso, eram as informações de milhões de judeus Ashkenazi, incluindo fotos, e-mails e parentesco, evidenciando mais uma manifestação antissemita que o mundo viu reascender desde o ataque terrorista do Hamas.
Os genes, pelo ponto de vista mais tradicional e que codificam proteínas, são apenas menos de 2% do nosso DNA. Nesse segmento, mas também nos outros 98%, está a nossa identidade. E esse código formado por milhões de polimorfismos (variações normais) é capaz de trazer nosso passado na forma de ancestralidade e nosso futuro na forma de probabilidades de doenças. Essa tecnologia está muito mais avançada e próxima do nosso cotidiano do que se imagina. São os chamados escores poligênicos. Vários países já possuem escores poligênicos para dezenas de doenças e, em breve, teremos também no Brasil. Será possível estimar a probabilidade individual de vários tipos de câncer, além de várias outras doenças, e traçar estratégias de prevenção e tratamentos precoces.
Mas, como todo avanço científico que muda a forma de enxergar a realidade, será preciso redefinir aspectos éticos e repactuar o assunto em nossa sociedade. Em um futuro que se avizinha, o Brasil está muito atrasado em vários aspectos desse debate, seja em propriedade intelectual por falta de prática ou propriedade individual pela desatenção em relação ao futuro da biotecnologia. O fato é que precisamos nos organizar para melhorar as linhas demarcatórias entre direitos, deveres e responsabilidades ligadas ao tema.
A discussão em andamento é urgente e complexa, e ainda está longe de ser concluída. Ela vai além de simplesmente proteger a propriedade individual ou os direitos sobre a propriedade intelectual. Por um lado, bancos de dados com milhões de DNAs individuais e anonimizados nos forneceram conhecimentos valiosos, ajudando a desenvolver estratégias avançadas em saúde pública. Por outro lado, ter acesso ao DNA de alguém pode revelar informações pessoais sensíveis, que deveriam ser de conhecimento e controle exclusivo do indivíduo a quem pertencem.
Para uma sociedade justa é essencial garantir um equilíbrio delicado entre o direito individual e a propriedade intelectual (referente a invenções, não a descrições da natureza) que promova o investimento em pesquisa e tecnologia. É necessário estabelecer práticas equitativas para proteger as pessoas em maior risco de doenças de abusos financeiros, sem que um excesso de regulamentações, inseguranças e barreiras desnecessárias impeçam descobertas que possam beneficiá-las. São avanços que permitirão o florescer do incipiente hub de inovações e biotecnologia brasileiro.