Os senadores querem acabar com a sua Black Friday
Projeto aprovado no Senado quer proibir descontos em livros por um ano após o lançamento
Publicado em 5 de novembro de 2024 às, 18h52.
Imagine alguém propondo um congelamento de preços de todos os livros publicados no Brasil por um ano, juntamente com um limite nos descontos que não podem ser maiores do que 10%. Achou um absurdo? Caso seja um consumidor de livros, provavelmente achou. Mas, caso seja o dono de uma editora, talvez esteja feliz, mesmo que não fale publicamente.
O projeto de lei aprovado pelo Senado tem várias consequências. A mais óbvia delas? Os livros serão lançados por um preço maior do que poderiam, sem a existência do projeto de lei. A demanda por livros não se esgota em um único momento, mas oscila ao longo do tempo. O tempo, que dizem ser o senhor da razão, também é o senhor dos eventos inesperados, o que significa que uma editora precifica um livro pensando em uma demanda média esperada, e precisa se ajustar sempre que possível, às mudanças no ambiente econômico. Desnecessário lembrar que editoras menores provavelmente se ajustam mais do que as maiores, certo?
Caso o cenário econômico seja de alta volatilidade, e se o preço não pode mudar em 12 meses, o que você faria? Tentaria colocar o preço bem próximo ao pico, tentando garantir alguma receita, já que não pode se ajustar a choques de demanda por um ano. Isto não só não aumenta a demanda por livros, como gera um aumento no nível de preços no setor, e isto significa um aumento da inflação. O projeto fala em punir a prática de dumping, mas todos sabemos o quanto o judiciário brasileiro pode ser lento em suas decisões (quando não reverte condenações). Sem falar que o conceito de ‘preço predatório’ é bastante controverso na literatura especializada e, até a conclusão do julgamento, você já terá comprado seu livro...
É interessante perceber como o projeto interfere no mercado de livros afirmando, por diversas vezes, que é importante respeitar o princípio da livre concorrência, ao mesmo tempo em que cria um congelamento de preços, cujo descumprimento implica na aplicação de multas. Quem já estudou um pouco de Ciência Econômica - ou mesmo de Economia Brasileira - percebe que congelamento de preços é o oposto de ‘livre concorrência’. Tivemos vários planos de estabilização ao longo da década de 80 que nos mostraram, insistentemente, que tabelamentos/congelamentos não são solução para problemas sociais.
O projeto chega a falar do livro como sendo algo de “importância estratégica”. É irônico que tenha sido concebido por uma senadora de esquerda, pois, nos últimos anos, falar da importância da leitura ou da cultura era alvo de crítica da mesma esquerda, que sempre associou o tema a um suposto discurso da direita, principalmente por conta dos seguidores do falecido Olavo de Carvalho. Vale a pena reproduzir este trecho do projeto:
Fixar o preço mínimo de venda ao comprador final, por prazo determinado, visa assegurar igualdade de tratamento ao comerciante livreiro, incentivo à ampliação do mercado livreiro nacional, o incremento à oferta de livros, a conceber-se hodiernamente ao livro e a seu conteúdo como elementos de apropriação cultural, intelectual e de informação para elevá-lo à status de produto de importância singular e estratégico protegido pelo Estado, como meio de influência e impulso à elevação do padrão intelectual do país. [página 12, não-numerada no documento original. Grifos meus]
Como ficam as promoções online no estilo ‘Black Friday’? Exatamente: serão extintas, em nome da livre concorrência e da ‘importância singular e estratégica do livro’. O que acontece quando se estabelece um congelamento de preços? Produtos somem ou são transformados em ‘novos produtos’ para escaparem dos preços congelados. Os interesses dos consumidores, agora deixados de lado em prol da - faço questão de ressaltar novamente - ‘importância singular e estratégica do livro’, cedem aos interesses das editoras, que enfrentarão menor concorrência online.
Em seu ótimo História da Riqueza no Brasil, especificamente em seu 34º capítulo, Jorge Caldeira mostra como o Senado Imperial, no reinado de Pedro II, atuou a favor dos traficantes de escravos (que emprestavam dinheiro a juros), estatizando por lei um banco, o Banco do Brasil, do Barão de Mauá, que, com seus juros baixos, prejudicava a confortável posição da concorrência. O discurso do Visconde de Itaboraí, para justificar a estatização é um primor: acusava a livre concorrência entre bancos de alimentar comportamentos imprudentes das pessoas. Não é difícil encontrar semelhanças com o que ocorre agora.
Pobres leitores. Tão próximos de Brasília, tão longe de Deus…