O quão caras são as moradias nas cidades brasileiras?
Tendência das capitais brasileiras é de estar acima do valor de 30%, indicando um difícil acesso geral à compra de habitações
Publicado em 16 de fevereiro de 2024 às, 12h43.
Última atualização em 19 de julho de 2024 às, 12h51.
Luciana Fonseca e Guilherme Dalcin
No livro Ordem sem Design, Alain Bertaud argumenta que, para os mercados de trabalho funcionarem, a população e as empresas precisam poder encontrar espaços financeiramente acessíveis para se instalarem. Porém, os valores de habitação considerados socialmente aceitos em cada cidade não correspondem a uma norma universal cientificamente definida. Eles dependem especialmente das características de renda da população local. O livro estima que a saúde financeira de um domicílio fica comprometida caso mais de 30% de seu rendimento mensal seja destinado a gastos com habitação - aluguel ou financiamento - valor que vai ao encontro do que é estipulado pela Lei de Comprometimento de Renda (lei no 8.692 de 1993).
Os primeiros resultados do Indicador de Acesso Habitacional, publicado recentemente pelo Instituto Cidades Responsivas considerando as maiores capitais do país, mostram que boa parte das habitações tendem a estar fora da faixa de valores que uma família de renda média consegue financiar mantendo sua saúde financeira. O indicador, cujos resultados estão ilustrados na figura abaixo, mede o percentual da renda domiciliar média de cada cidade que precisaria ser comprometida para financiar uma moradia com o preço médio dos imóveis anunciados para venda. Quanto mais baixo o valor do indicador, mais acessível é a compra de uma moradia na cidade.
Porto Alegre, Brasília e Aracaju apresentaram os menores valores do indicador, o que significa que, para o período analisado, elas são as cidades em que as habitações são mais acessíveis para serem financiadas. Encontrar a razão exata desses resultados não é fácil. Porém, pode-se especular que Porto Alegre está em primeiro lugar devido à estagnação de sua população - que diminuiu em 5,4% entre 2010 e 2022 conforme os dados do Censo Demográfico - combinada com o fato da cidade apresentar uma das maiores quantidade de imóveis anunciados para venda no país, correspondente ao dobro do que é anunciado em Belo Horizonte e Curitiba, por exemplo. Já Brasília e Aracaju, apesar de terem crescido demograficamente na última década, tiveram um decréscimo de aproximadamente 2,3% na renda domiciliar média entre 2010 e 2022, o que pode eventualmente ter diminuído o poder de compra da população, fazendo com que os preços diminuíssem para se adequar ao perfil da demanda.
Os maiores valores do indicador - representando as cidades com imóveis mais caros em relação à renda domiciliar média - correspondem a Maceió, Florianópolis, São Luís e Recife. Pode-se especular que a atratividade turística dessas regiões é um dos fatores responsáveis por esse resultado, visto que os anúncios de imóveis mais caros encontrados nelas localizam-se à beira-mar ou em suas proximidades, os quais contribuem para elevar o preço médio anunciado nessas cidades. Também se observa que Florianópolis, além de ser a capital que mais cresceu em termos percentuais na última década, possui a terceira maior renda domiciliar média conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE, o que implica em uma maior demanda por residências devido ao poder de compra da população, resultando em um aumento de preços.
Apesar dessa diferença de valores entre cidades, nota-se que a tendência das capitais brasileiras é de estar acima do valor de 30%, indicando um difícil acesso geral à compra de habitações. Tais resultados acima da referida faixa, que serve como referência para a saúde financeira, indicam a existência de um desequilíbrio entre a oferta residencial e a demanda por moradias: o fato de um número reduzido de habitações ser procurado por muitos indivíduos incentiva a elevação dos preços. Isso pode ser resultado de mudanças recentes no perfil da população que ainda não foram absorvidas pelo mercado imobiliário, como, por exemplo, uma variação recente da renda domiciliar que alterou a demanda por moradias em determinadas faixas de preço. Entretanto, valores muito elevados possivelmente indicam que há razões estruturais para a diferença entre demanda e oferta. Nesse caso, como citado em Ordem sem Design, as possíveis causas podem estar relacionadas à incompatibilidade entre os instrumentos de planejamento vigentes e as demandas populacionais.
O que uma cidade precisa fazer para diminuir o valor do indicador? Uma alternativa é incentivar a construção de novas habitações, visando aumentar a oferta e diminuir os preços. Nesse sentido, pode-se propor alterações nas regras urbanísticas, aumentando os índices de aproveitamento permitidos ou expandindo o perímetro urbano municipal. Também é possível fornecer incentivos financeiros para que as empresas criem novos empreendimentos residenciais em áreas de interesse da administração pública, como o imposto de renda negativo, instrumento utilizado para dar um retorno financeiro para quem cumpre algum tipo de função social relevante.
Ao invés de agir sobre a oferta, também seria possível tentar alterar o perfil da demanda populacional por meio de políticas de auxílio a estratos de menor renda, seja auxílios financeiros diretos ou subsídios à compra de imóveis. Tais soluções dependem do quanto o poder público consegue dispor de seu orçamento para esse tipo de política e não são, necessariamente, uma certeza de sucesso no longo prazo, visto que dependem de um contexto municipal em que tais subsídios contribuam para que os beneficiados tenham condições melhores de vida, possibilitando um desenvolvimento pessoal que posteriormente torne-os independentes dos auxílios públicos.
Dentre os fatores que tornam importante que a administração pública tente reduzir a relação entre o preço das habitações e a renda domiciliar está o fato de que quanto mais difícil for adquirir uma residência no mercado regular, mais a população irá recorrer a alternativas no mercado informal. No gráfico abaixo, correlacionamos o valor do indicador de acesso habitacional com o percentual de domicílios localizados em aglomerados subnormais, que são definidos como conjuntos de habitações caracterizados pela ilegalidade da ocupação da terra, presença de urbanização fora de padrões vigentes e/ou precariedade do fornecimento de serviços públicos essenciais. Os resultados deste gráfico mostram uma tendência de aumento do percentual de domicílios em aglomerados subnormais conforme os preços das moradias se tornam mais elevados.
Os resultados do gráfico podem apresentar algum tipo de distorção devido ao fato dos dados dos aglomerados subnormais terem sido elaborados pelo IBGE no ano de 2019. Porém, mesmo que a correlação positiva não seja estatisticamente forte - especialmente se observarmos que os maiores valores de domicílios em aglomerados subnormais não coincidem exatamente com os maiores valores do indicador - pode-se avaliar que há algum tipo de relação concreta entre os dois atributos, principalmente se observarmos que parece existir um padrão no qual a maior parte das cidades com baixos valores do indicador possuem também baixos valores de domicílios localizados em aglomerados subnormais.
Em suma, o contínuo monitoramento de aspectos de nossas cidades, como o acesso à compra de habitações, é importante para que se possa estimar a eficiência de seu funcionamento e a eficácia das políticas praticadas pela administração pública. É comum que os planos diretores prevejam a existência de instrumentos de monitoramento do desenvolvimento urbano. Ocorre que, na prática, esse monitoramento quando de fato existe, tende a não ser realizado de forma contínua ou divulgado publicamente. A análise realizada neste artigo - a partir do índice de acesso habitacional - é um exemplo de discussão que pode ser tornar mais comum no momento em que a administração pública passe a valer-se de indicadores que sejam capazes de avaliar objetivamente as estratégias traçadas para o desenvolvimento urbano.