Colunistas

O psicólogo que decidiu morrer 

A decisão pelo suicídio assistido do Prêmio Nobel Daniel Kahneman 

 (	Lior Mizrahi /Getty Images)

( Lior Mizrahi /Getty Images)

Gabriel Prado
Gabriel Prado

Colunista - Instituto Millenium

Publicado em 3 de abril de 2025 às 20h28.

Daniel Kahneman dedicou sua vida a estudar como pessoas tomam decisões. Nascido em Tel Aviv, no que era então o Mandato Britânico da Palestina, e filho de judeus lituanos, Kahneman passou a infância na França, fugindo dos nazistas. Quando tinha oito ou nove anos, voltando para casa sozinho, depois de brincar com um amigo cristão, foi parado por um soldado da SS. O oficial se aproximou, levantou o menino no colo e, sem perceber que ele era judeu, começou a lhe abraçar. Tomado de emoção, o soldado abriu sua carteira, mostrou a Kahneman a foto de um menino e ainda lhe deu algum dinheiro. Kahneman saiu com a convicção que sua mãe estava certa: “as pessoas são infinitamente complicadas e interessantes”. 

Adolescente, foi atraído pela filosofia, mas migrou para a psicologia quando percebeu que ele tinha mais interesse em entender o que fazia as pessoas acreditarem em Deus do que em determinar se Ele existia. Seu trabalho como psicólogo explorou os vieses e ilusões a que estamos sujeitos e nos levam a tomar más decisões. Mostrou, por exemplo, que nos importamos muito mais em perder uma quantia de dinheiro do que em deixar de ganhar exatamente a mesma quantia — um dos estudos que lhe deu o Prêmio Nobel de Economia, apesar de não ser economista. Em sua pesquisa, Kahneman expôs as inconsistências do raciocínio humano: falhas em como processamos informações e avaliamos nossa satisfação com a vida. 

Ano passado, ele tomou sua decisão final: o suicídio assistido, em uma clínica na Suíça. 

O pesquisador tinha 90 anos, mas não aparentava ter nenhum problema de saúde grave. Em um e-mail enviado às pessoas mais próximas alguns dias antes de sua morte, ele se explicou: “Eu ainda estou ativo, apreciando muitas coisas da vida (exceto o noticiário) e morrerei um homem feliz. Mas meus rins estão nas últimas, a frequência dos lapsos de memória está aumentando, e tenho noventa anos. É hora de partir”. 

A causa de morte não foi divulgada junto com o anúncio. Um ano depois, foi o jornalista Jason Zweig, que chegou a colaborar com Kahneman na primeira versão de seu livro Rápido e devagar: Duas formas de pensar, que revelou a escolha pelo suicídio assistido em sua coluna em The Wall Street Journal. 

 E resumiu:

“Sua morte levanta questões profundas: como a maior autoridade do mundo em tomada de decisões tomou a decisão final? Até que ponto ele aderiu a seus próprios preceitos sobre como fazer boas escolhas? Como sua decisão se encaixa com o debate crescente sobre os efeitos negativos da longevidade extrema? Quanto controle temos — e quanto deveríamos ter — sobre a nossa própria morte?” 

O ensaio de Zweig transparece a recusa do jornalista em aceitar a decisão, uma resistência que ele próprio admite — e compartilha com diversos outros amigos e familiares do psicólogo. Como a pesquisa de Kahneman poderia explicar o ocorrido? Que cálculos hedônicos ele teria considerado? Zweig se digladia com essas questões em uma tentativa frustrada de explicar o ocorrido, de imbuir um pouco de ordem em um acontecimento que foge à compreensão racional. 

Uma das inconsistências humanas que Kahneman expôs foi como estamos dispostos a gastar mais recursos para manter aquilo que temos do que gastaríamos para adquirir a mesma coisa. Como exemplo, imagine que você comprou um ingresso para um show por duzentos reais, e ele está sendo revendido por mil. Nesse cenário, a maioria das pessoas não toparia vender os ingressos para embolsar os mil reais. Mas se o preço fosse mil reais desde o início, essas mesmas pessoas não teriam comprado. A teoria econômica tradicional diria que é uma contradição: se a pessoa prefere ter mil reais do que ir ao show, ela deveria vender os ingressos quando eles valorizam. Quando já temos algo, mostrou Kahneman, agimos diferente de quando não temos. 

Será que é isso que ele percebeu sobre a vida? Se diagnosticado com uma doença terminal, ele provavelmente não teria lutado contra. Então por que estava se mantendo vivo? Seria nosso instinto de manter a vida só mais um exemplo do princípio de aversão à perda revelado por Kahneman? 

A morte causou em seus amigos e admiradores uma sensação parecida com uma que ele mesmo havia sentido anos antes. No que ele descreveu como a experiência intelectual mais significativa dos seus tempos de PhD, Kahneman passou um tempo em uma clínica psiquiátrica em Massachusetts. A cada semana, a equipe se reunia para discutir o caso de um paciente. Em seu relato para o Prêmio Nobel, o psicólogo relembrou um desses estudos de caso, em que o time tentava explicar o suicídio de um paciente ocorrido na noite anterior: “Foi uma discussão notavelmente honesta e aberta, marcada pela contradição entre a poderosa sensação retrospectiva de inevitabilidade do evento e o fato óbvio de que o evento não tinha sido previsto”. 

A morte de Kahneman, nesse sentido, não apresenta essa contradição: é justamente o fato de que ninguém pôde antecipá-la que infligiu naqueles próximos a ele a sensação poderosa de que poderia ter sido evitada. Quando comunicou sua decisão a amigos e familiares, o pesquisador recebeu vários pedidos para que reconsiderasse. Mas ninguém conseguiu convencer o maior especialista do mundo em decisões de que aquela era a decisão errada. 

Philip Tetlock, amigo pessoal de Kahneman que se tornou famoso por seu trabalho sobre a incapacidade humana de fazer previsões, recebeu a notícia com resignação: “Até os últimos momentos, ele era muito mais inteligente do que a maioria de nós". Explica: “Suspeito que ele tenha elaborado um cálculo hedônico para determinar quando os fardos da vida começariam a superar os benefícios — e provavelmente previu uma queda acentuada no início dos seus noventa anos”. “Nunca vi uma morte tão bem planejada quanto a que o Danny arquitetou”. 

Boa parte da vida acadêmica de Kahneman foi dedicada a entender o que deixava as pessoas felizes. No início dos anos 2000, ele encontrou um bom parceiro para essa investigação: o economista Alan Krueger, conhecido por seus estudos quantitativos em campos diversos. Juntos, eles tentaram encontrar medidas para o bem-estar subjetivo melhores do que as normalmente usadas pelos economistas. O principal objetivo dessa agenda era demonstrar que o mais importante para as pessoas era a felicidade do “eu experiencial”, a felicidade sentida a cada momento, aqui e agora. 

De forma geral, o projeto não teve muito sucesso. Kahneman mais tarde concluiu que as pessoas não queriam ser felizes da forma como ele e Krueger haviam definido. Que elas estavam mais preocupadas com estarem satisfeitas com a história que contavam sobre suas próprias vidas — com aquilo que elas lembraram sobre si mesmas —, do que com como viviam cada momento. Tragicamente, Krueger também optou pelo suicídio, em 2019. Se não tivesse morrido, certamente teria sido premiado com o Prêmio Nobel em 2021. 

Não foi o único privado de um Nobel por uma vida abreviada. Os estudos que renderam o prêmio a Kahneman foram todos feitos em colaboração com seu melhor amigo, Amos Tversky. Por anos, os dois trabalharam juntos e criaram as bases do campo que viria a ser chamado de “economia comportamental”, que estuda os fatores psicológicos das decisões econômicas. Em determinado momento a amizade esfriou. Parte do motivo parece ter sido o ressentimento que Kahneman sentia com o fato de Tversky ter recebido a maior parte do reconhecimento público pelas descobertas que fizeram em conjunto. A situação chegou a tal ponto que eles tiveram um “divórcio de amizade”: Kahneman declarou que não seriam mais amigos. Três dias depois, no entanto, recebeu uma ligação de Tversky: ele havia sido diagnosticado com um melanoma maligno e não teria mais de seis meses de vida. Nas palavras de Kahneman, a ligação era a forma de Tversky de dizer: “Somos amigos, independentemente do que você ache que somos”. Voltaram a trabalhar juntos em uma coleção de artigos, mas Kahneman teve que completá-la sozinho. 

Já Anne Treisman, que foi casada com Kahneman, só não recebeu um Prêmio Nobel porque não há um para seu campo de estudo: ela revolucionou nosso entendimento sobre como percebemos objetos e direcionamos nossa atenção, sendo premiada com a Medalha Nacional de Ciências. Sua morte em 2018 ocorreu após uma batalha contra a demência causada por problemas vasculares, deixando Kahneman bastante abalado. 

Esses contatos com a morte lenta e penosa podem ter ajudado a solidificar a convicção do pesquisador sobre como gostaria de partir. A morte da mãe também foi acompanhada de um declínio cognitivo que o deixou consternado. No entanto, em seu e-mail final Kahneman conta que a ideia de terminar a própria vida antes de sofrer as infelicidades da velhice lhe era antiga: “Desde a adolescência, considerei que os sofrimentos e as indignidades dos últimos anos de vida são supérfluos, e estou agindo de acordo com essa convicção”. 

Se o que atraiu Kahneman para a psicologia foi a filosofia, a última pergunta que ele tentou responder foi a que Albert Camus chamou de a única verdadeiramente séria da filosofia: julgar se a vida merece ou não ser vivida. Sua decisão final parece derivar de uma percepção de que conforme os anos avançassem, a resposta seria cada vez mais “não”. Camus diria que o caso é uma exceção: ele acreditava que aquilo que causava o ato final era quase sempre incontrolável; que o suicídio era raramente fruto de reflexão. 

O psicólogo Viktor Frankl, que também se debruçou sobre a questão do suicídio, ponderou que a dissuasão do ato vinha não por o indivíduo considerar que tinha algo a esperar da vida, mas sim que a vida tinha algo a esperar dele. Em essência, algo que tornasse sua vida significativa. Em uma entrevista, Kahneman revelou nunca ter entendido o conceito: “As pessoas associam a felicidade principalmente à companhia de outras pessoas. Lembro de uma conversa com Martin Seligman, o fundador da psicologia positiva, em que ele tentou me convencer de que eu tinha uma vida significativa. Eu insisti — e ainda acredito nisso hoje — que tenho uma vida interessante. ‘Significativa’ não é algo que eu entenda. Sou uma pessoa de sorte e também razoavelmente feliz — principalmente porque, pela maior parte da minha vida, trabalhei com pessoas cuja companhia eu apreciava”. 

Se não encontramos respostas para a morte nos estudos de Kahneman, em suas análises sobre felicidade e satisfação, tampouco vamos encontrá-las na filosofia. Jason Zweig ponderou uma última possibilidade: a de que o psicólogo estivesse seguindo a regra de pico-fim, mais uma de suas teorias. Em uma série de experimentos, Kahneman demonstrou que tendemos a lembrar de nossas experiências baseando-se não nelas como um todo, mas sim nos picos de emoção e em como elas acabam: avaliamos mais positivamente uma experiência com um final muito feliz, mesmo que na média ela tenha sido pior. 

Talvez esse seja o último presente que Kahneman tentou deixar a quem amava: lembranças finais alegres; e não permeadas pelos infortúnios da idade avançada. Ele agradeceu aos amigos e familiares em seu texto: “Obrigado por ajudar a fazer da minha vida uma vida boa.” 

Após o falecimento da mulher, Kahneman se aproximou de Barbara Tversky, viúva de seu amigo Amos. Foi com ela e com o resto da família que ele passou sua última semana, em Paris, indo ao balé e à ópera, tentando aprender coisas novas, comendo suflês de chocolate e îles flottantes, escrevendo de manhã e apreciando as nenúfares de Monet à tarde. 

Acompanhe tudo sobre:Psicologia