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O manicômio urbanístico 

Casuísmos, regras contraditórias, ambiguidade e burocracia não se restringem ao sistema tributário. A regulação urbanística é igualmente caótica 

Vista do bairro Jardim Paulistano em São Paulo, SP - predios, moradia, imoveis, mercado imobiliario, edificio, cidade, urbanismo

Foto: Leandro Fonseca
Data: 23/01/2025 (Leandro Fonseca/Exame)

Vista do bairro Jardim Paulistano em São Paulo, SP - predios, moradia, imoveis, mercado imobiliario, edificio, cidade, urbanismo Foto: Leandro Fonseca Data: 23/01/2025 (Leandro Fonseca/Exame)

Victor Carvalho Pinto
Victor Carvalho Pinto

Sócio do Escritório Apparecido e Carvalho Pinto Advogados

Publicado em 21 de fevereiro de 2025 às 10h49.

A disfuncionalidade do sistema tributário brasileiro é tão acentuada que a expressão “manicômio tributário” entrou para o vocabulário popular, sintetizando uma série de absurdos reconhecidos por todos, mas que persistem por décadas sem solução. A reforma tributária em implementação, com uma emenda constitucional e uma lei complementar já aprovadas, busca consolidar tributos e padronizar regras e alíquotas, representando um passo para a superação desse cenário. 

No entanto, a multiplicação de casuísmos, regras contraditórias, ambiguidade e burocracia não se restringe ao sistema tributário. A regulação urbanística, que define o que pode ser construído e que atividades podem ser realizadas em cada parte da cidade, é igualmente incoerente e caótica. 

A Constituição Federal de 1988 determinou a criação de uma lei federal de política urbana e obrigou cidades com mais de 20.000 habitantes a aprovarem planos diretores. O Estatuto da Cidade, promulgado em 2001, estabeleceu diretrizes para esses planos, mas não estruturou um sistema de planejamento uniforme, limitando-se a exigir a inclusão de determinados temas e revisões periódicas. 

Atualmente, praticamente todo município de médio e grande porte tem um plano diretor, mas este coexiste com diversas outras leis municipais que regulam a ocupação do território sem qualquer padronização quanto à terminologia e à cartografia adotadas. Cada cidade desenvolve seus próprios instrumentos, resultando em um mosaico confuso de normas. 

O Plano Diretor de São Paulo, por exemplo, adota 2 macrozonas, 2 zonas, 8 macroáreas, uma área, 11 setores, 5 zonas de interesse social, 14 índices urbanísticos e 3 coeficientes de cálculo de contrapartidas. Ele é regulamentado pela Lei de Uso e Ocupação do Solo (LUOS), que emprega 33 tipos de zona, 7 categorias de sistema viário e 13 tipos de perímetro de qualificação ambiental. Além disso, há 16 índices de parcelamento do solo e 15 índices de ocupação. Os usos permitidos estão organizados em 21 seções, 87 divisões, 673 classes e 1.301 subclasses, com parâmetros adicionais de incomodidade para ruído, vibração, radiação eletromagnética e poluentes atmosféricos. 

Além do plano diretor e da LUOS, outras leis e planos aplicam-se a regiões específicas, estabelecendo zonas e índices próprios. Grandes empreendimentos ainda precisam elaborar estudos de impacto de vizinhança, que podem impor exigências adicionais. Em alguns bairros, há também restrições convencionais estabelecidas pelo loteador. 

A essa regulação urbanística (voltada para a organização da cidade) soma-se a regulação edilícia (focada na segurança e conforto das edificações), composta pelo Código de Obras e Edificações, normas de acessibilidade, regulamentos de prevenção de incêndios e normas da ABNT. Em muitos casos, incidem ainda normas ambientais e de proteção do patrimônio cultural, com instrumentos e licenciamentos próprios. 

Embora estruturas semelhantes existam nas principais cidades do país, não há qualquer padronização nacional. O mesmo instrumento, como um plano diretor ou uma LUOS, pode ter conteúdos distintos em cada município. Essa fragmentação é particularmente problemática em regiões metropolitanas, onde cidades conurbadas precisam de planejamento integrado. 

A ausência de um sistema de planejamento resulta em inflação normativa, sobreposição de competências, ambiguidade e casuísmo, favorecendo a corrupção e afastando investimentos. O licenciamento de construções e atividades econômicas pode levar meses ou anos, dependendo da burocracia municipal e da interpretação de diferentes órgãos públicos. 

A insegurança jurídica é tão grande que a única forma confiável de determinar o zoneamento de um imóvel é a emissão de uma certidão específica pela prefeitura, o que gera custos adicionais e depende da disponibilidade de poucos funcionários especializados. Mesmo assim, há o risco de ativismo judicial, que pode resultar em embargos e interdições sem uma lógica clara, agravando o quadro de imprevisibilidade. 

Os prejudicados não são apenas os construtores e incorporadores, mas também os empreendedores, que precisam encontrar imóveis compatíveis com suas atividades e enfrentar um processo complexo para obter e renovar alvarás de funcionamento; os arquitetos e urbanistas, que devem decifrar legislações diferentes para cada município onde atuam; e os moradores, que desconhecem o que poderá ser construído ou instalado em sua vizinhança, gerando insegurança quanto ao desenvolvimento do bairro. 

Do ponto de vista econômico, a desordem urbanística gera custos de transação elevados, reduzindo a atividade econômica, desestimulando investimentos e contribuindo para a degradação urbana. Isso leva à redução da oferta de imóveis e empregos, ao aumento dos aluguéis e ao crescimento da informalidade. 

Todo esse arsenal de normas, planos e exigências é voltado para o controle do que o mercado constrói nos lotes privados, mas raramente se aplica às obras e aos serviços realizadas pelo poder público, que são tão ou mais importantes para o ordenamento do território. Conjuntos habitacionais, metrôs, BRTs, ferrovias, rodovias, aeroportos, pontes, túneis, assim como infraestruturas de saneamento básico, telecomunicações e energia elétrica são comumente feitos sem licenciamento urbanístico ou mesmo consulta aos órgãos responsáveis pelo planejamento urbano. A ausência de coordenação entre as diversas políticas setoriais que impactam o território resulta em espraiamento urbano e incentivo à ocupação irregular do solo, em contradição com os objetivos de contenção da expansão urbana previstos nos planos diretores. 

Assim como a reforma tributária busca simplificar o sistema fiscal, é necessária uma reforma urbanística para modernizar e harmonizar a legislação de planejamento e gestão urbana. Essa reforma deve incluir: 

  1. Sistema nacional de planejamento urbano: tipificação e padronização dos planos urbanísticos e da respectiva cartografia.
  2. Consolidação da regulação urbanística: fortalecimento da Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (INDE) como portal digital unificado, georreferenciado e de livre acesso, onde toda a legislação urbanística e os planos vigentes possam ser consultados de forma clara e acessível.
  3.  Regulação discricionária com base em desempenho: substituição gradual do zoneamento tradicional (que define rigidamente os usos permitidos para cada lote) por um modelo mais flexível, baseado na avaliação dos impactos urbanos e da compatibilidade de cada empreendimento com o planejamento geral da cidade.
  4. Estado de direito urbanístico: isonomia entre poder público e iniciativa privada na aplicação da legislação urbanística, com licenciamento obrigatório das infraestruturas públicas. Uma reforma urbanística que simplifique, padronize e modernize as regras do setor permitirá cidades mais dinâmicas, acessíveis e eficientes. Se o Brasil quer ser um país mais competitivo e inclusivo, não basta reformar os tributos; é preciso também acabar com o manicômio urbanístico. 
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