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O governo dos ungidos e a genuína relevância social do juiz 

A pretexto de fazer o bem, e em caráter definitivo, o Judiciário, orgulhosamente, vem assumindo o papel de protagonista do governo dos ungidos

A Justiça é uma escultura localizada em frente ao prédio do Supremo Tribunal Federal, na Praça dos Três Poderes - Brasilia - DF - Distrito Federal- 

Foto: Leandro Fonseca
data: 27/08/2024 (Leandro Fonseca)

A Justiça é uma escultura localizada em frente ao prédio do Supremo Tribunal Federal, na Praça dos Três Poderes - Brasilia - DF - Distrito Federal- Foto: Leandro Fonseca data: 27/08/2024 (Leandro Fonseca)

Amanda Flavio
Amanda Flavio

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Publicado em 6 de março de 2025 às 19h49.

É incrível como algumas pessoas se apresentam ostensivamente como paladinas da virtude sem ruborescer. É mais incrível ainda quando quem o faz é um servidor público, portanto, um funcionário do povo, e as pessoas aceitam, acatam e seguem seus comandos acriticamente, porque, supostamente, são consideradas autoridades. 

É bem verdade que esse perfil pessoal sempre fez sucesso em algumas profissões. É o caso dos candidatos a cargos eletivos, por exemplo. Faz parte da própria campanha para se tornar deputado, governador, prefeito, senador, que a pessoa alardeie abertamente sua própria benevolência e capacidade para produzir resultados socialmente valorosos. Essa atitude integra, portanto, a racionalidade do comportamento, porque, no final das contas, trata-se de se “vender” e tentar se “diferenciar” das demais “opções” no “mercado de candidatos” à gestão de um ente estatal. 

Faz algum sentido, portanto, que candidatos ao Legislativo e ao Executivo assim se apresentem publicamente, e é bem verdade também que o povo em geral percebe perfeitamente tratar-se, no caso, de um mero comportamento oportunista direcionado a uma finalidade. 

Curiosamente, entretanto, uma outra categoria de servidores públicos, nos últimos tempos, no Brasil, vem se destacando no propósito de revelar-se moralmente irrepreensível em escala midiática. Trata-se dos juízes, aqueles aos quais a população historicamente recorreu em busca de uma – suposta – neutralidade, para arbitrar conflitos de interesses pessoais ou coletivos. 

Autodeclarados conhecedores do bem e do mal, alçados por si mesmos à nobre missão de serem vetores da prosperidade e das boas escolhas da sociedade, alguns magistrados vêm ocupando crescentemente o debate político com certezas muito definitivas e poderes um tanto ilimitados de agir em prol do que é melhor para o país. 

A atitude dos “neo-ungidos” vem se alimentando, recentemente, do debate público sobre regulação de redes sociais e os limites da liberdade de expressão. Consideradas autoridades, a eles são oferecidos os púlpitos e os microfones, aos quais eles a cada dia se habituam mais. Proeminentes acadêmicos que (alguns) deles são, detentores de uma retórica envolvente que (alguns) deles são, eis o ambiente perfeito para confundir incautos, consolidar posições como se fossem a única solução democraticamente aceitável e propagar, ao fim e ao cabo, a própria relevância. 

Conhecido pelo humor refinado, Millor Fernandes costumava advertir, sem intenção de fazer graça, para o fato de que ele desconfiava de todo idealista que lucra com seu ideal. No caso dos políticos de carreira (vereadores, deputados, presidentes e por aí vai), o lucro a ser obtido é claro, e não engana ninguém. Faz-se o que é feito em troca de voto. 

No caso do Judiciário, a utilidade a ser obtida é mais sutil, e por isso menos transparente à população. Trata-se do prestígio, da pretensão de notoriedade, do propósito de imortalidade, desses objetivos que só o ego tem.  

Em jogo, todavia, estão as liberdades individuais dos cidadãos. A compreensão nua e crua do tema da liberdade de expressão e da necessidade ou não de regulação das redes sociais pode ser assim posta: de um lado, tem-se uma infinidade atual e potencial de empresas, oferecendo espaços para opinião e debate a todos e a qualquer um, com variada linha ideológica, todos correndo o risco de serem responsabilizados pelas suas ações; de outro, tem-se um servidor público reivindicando a intenção de dizer o que pode ser dito ou não, quem pode dizer, que empresa pode se oferecer no mercado ou não, sem se responsabilizar individual ou institucionalmente pelas suas ações. Assim colocado, parece simples escolher o menos pior. Lembre-se, a propósito, que a apenas um deles (o servidor público) é assegurado o monopólio do enforcement. 

Todo esse debate, contudo, ainda assim é válido e, conforme a ordem constitucional brasileira, deve ser travado no espaço reservado às escolhas nacionais sensíveis: o Legislativo. A pretexto de uma suposta omissão desse Poder, todavia, o Judiciário assumiu o tema para si e tem limitado o debate e a decisão, que deveriam ser amplamente realizados, ao pequeno universo de seus integrantes. 

O exemplo mencionado é apenas um deles. A pretexto de fazer o bem, e em caráter definitivo, o Judiciário, orgulhosamente, vem assumindo o papel de protagonista do governo dos ungidos, levantando bandeiras e “propulsionando” a sociedade para um estágio civilizatório mais avançado. O movimento não é indolor. Para cada novo ato nesse sentido, abre-se uma nova fissura nos pilares da democracia liberal: arruína-se um pouco mais valores caros como as garantias e direitos individuais, a separação dos poderes e a democracia tal como a conhecíamos. 

Imparcialidade, neutralidade e equidistância das partes são qualidades historicamente atribuídas aos juízes em suas respeitáveis atribuições. Do pleno exercício dessas qualidades é que devem decorrer sua relevância social e superioridade institucional. Já é tempo de resgatá-las. 

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